É, porém, sem dúvida, de Lacerda e Almeida, astrônomo e matemático paulista, nomeado, em 1797 Governador dos Rios de Sena (Zambézia), na África Oriental, o primado neste momento. A ele, o sujeito lírico cede a voz para que, através de fragmentos de seu diário, apresente as observações geográficas e a história “esboço os meus mapas que descrevem os rios as pequenas povoações.” (Idem. p. 48)
São fundamentais os poemas que referem a Lacerda e Almeida, “O telescópio e a bússola do astrónomo paulista Lacerda e Almeida”, “Fragmento do diário de Lacerda e Almeida sobre Tete”, “As insondáveis viagens”, “ Os itinerários sem mapas”, “ Nota biográfica de Lacerda e Almeida” e “ M’Bona”. E não poderia ser diferente.
A chave para o entendimento do destaque dado ao viajante brasileiro é o último verso de “Os itinerários sem mapas”: “procuro em vão desenhar os itinerários do ouro entre o oriente e ocidente“ (Idem.p.49) ou no poema “ nota biográfica de Lacerda e Almeida”: “Fui nomeado governador dos rios de Sena e incumbido da travessia até a costa ocidental africana” (Idem. p.50).
Explico por que a chave do entendimento. A par da história, e a história está lá:
cheguei a Moçambique em 1797
já com larga experiência na exploração geográfica do Brasil
nomeadamente a missão de demarcação de limites
da fronteira norte em 1780
após o tratado de santo idelfonso
para elaborar uma relação topográfica das minas de ouro da África Oriental
Este projeto inclui a constituição de uma companhia de comércio do
Oriente
e retoma o formulado de 1725
por D. Luís da Cunha em colaboração com o geógrafo francês Jean-Baptiste Bourguingon d’Anville
(LEITE, 2017, p. 50)
a par da história, há uma linha de identificação entre o personagem histórico e o sujeito lírico: a ligação do Oriente ao Ocidente. No primeiro, a viagem real, no segundo, a viagem propiciada pela “paisagem com uma janela dentro”, a viagem estática, a da memória-imaginação, a do anseio de desbravamento da identidade e da subjetividade de suas fronteiras, ou ainda a viagem profética instaurada em “Visitação do Índico em Marrakesh” (LEITE, 2017, p.54,55), última parte do livro.
É quando na poesia acontece o encontro amoroso no desencontro porque “entretanto eu dormia“ (LEITE, 2017, p.56) – poema que se completa em outro “ O chamamento (Azaan)” ( Idem. p. 60) – “ Eu dormia mas meu coração velava” ( Idem. p.61).
São poemas de extrema sensibilidade estes de encontro, da “Visitação do Índico em Marrakesh” (Idem. p. 54 ) até ao poema final“ Os caminhos do deserto” ( Idem. p.73). Há momentos de puro lirismo e poder erótico.
pequenos e secretos vasos de vidro
que escorrem pelos poros da pele e a encantam que ser entrando pelos labirínticos
desejos do corpo e sedutoramente o enlaçam por entre estas pequenas artérias
da cidade amuralhada
coração intenso e cativo fragrância
em nossas diversas geografias em nós dois reencontrada. (LEITE, 2017, 71)
O Oriente expressa toda uma vasta concepção de beleza, capaz de transcender o perecível e o comum acaso. É no sentimento amoroso que a viagem se completa.
Dizes: o achamento só é possível no cruzamento de acasos
conjurados
ou num céu sem nuvens
(LEITE, 2017, 72)
Desaparece qualquer possibilidade de cisão, rompem-se as fronteiras. Agora o sujeito lírico está de fato “em casa para sempre”, pois que a geografia desenhada, ao fim e ao cabo é a do amor, força unificadora do universo.
talvez alguém tenha ouvido a tua voz caminhando rente ao deserto
e rente ao mar o Índico
do outro lado do tempo, num outro mar e num outro continente
Aqui no deserto a geografia do amor é um estranho desenho
que as areias e o vento as nuvens e a espuma.
recomeçam sem cessar
(Idem. p.73)