Paisagem com janela dentro

Comenta Eliade (1991) que a casa está inscrita no corpo não como traço mnêmico, mas como imagem de intimidade, como imagem que busca um centro, que instaura um centro, que cria universo.

“Misturo tudo nesta infância sem trégua”  (LEITE, 2017, 24), afirma o sujeito lírico. E ao mergulhar nesta infância infinita, mergulha na  sua casa,“ primeiro mundo do ser humano” (BACHELARD, 2005, p.26), mergulha na cultura moçambicana, nos seus mitos ancestrais, nos seus ritos, revelando a forma como deus deixou a terra e cedendo a voz à Máscara Kapoli, à Máscara Kampini, à Máscara Dzwirombo, espíritos contraditórios, “ descoincidentes zoomórficos” (LEITE, 2017, 30).

 É um dos momentos mais ricos da obra, em que superam-se todos os espaços reais para revelação de mundo mítico, atemporal, circular, teluricamente moçambicano com os seus elementos eternos:

Somos os sem rosto

os ancestrais os que lembram as hienas hipopótamos macacos trombas orelhas e cornos levantados.

esgares, pegadas e sussurros palavras e rugidos

silêncio

somos os misturados descoincidentes zoomórficos

criaturas e criadores

o nosso espírito dança continuamente

Somos aqueles que são secretos

Vivemos no bosque sagrado E não tememos

a morte nem os mortos

Porque somos os acompanhantes

Os camaleões gigantes

de deus

(LEITE, 2017, 30)

É importante observar que a Máscara Nyau avança na viagem do sujeito lírico, quando se instaura a questão da identidade híbrida.

Vale esclarecer que o Nyau (e suas máscaras) é uma manifestação cultural de Moçambique, que tem sua origem ligada à formação do Estado Undi, por volta do século XVII, quando se supõe ter sido adotado como forma de afirmação do seu poder perante os povos conquistados. Da perspectiva lendária, pode-se dizer que as fontes orais continuam a relacionar a origem aos Undi, que, supostamente, teriam vindo do Malawi para ensinar esta dança aos moçambicanos. Não entro aqui nas implicações políticas históricas. Interessa, neste momento, mostrar o Nyau como tradição, como performance, em que os dançarinos usam máscaras esculpidas por artistas, que tem o dom de ver os já mencionados espíritos contraditórios e sabedoria suficiente para vencê-los.

O Nyau tem papel fundamental em cerimônias importantes, nomeadamente em ritos de iniciação de jovens, em funerais, nos ritos de luto e entronização do chefe.

Como dizia, o sujeito lírico leva consigo o Nyau, quando se debruça sobre sua própria identidade, uma identidade de matriz híbrida. E aqui, Ana Mafalda retoma, na íntegra, o já citado poema “Fronteiras, de que lado pergunto-me” (LEITE, 2017, 34).

E, então, a poeta lança mão de figuras históricas, personagens da terra, como Dona Francisca Josefa de Moura e Meneses ou Dona Leonarda, e mesmo Chiponda, como se a história pudesse dar concretude à própria viagem imaginária.

É o momento em que Lacerda e Almeida busca mapear as minas de ouro na África Oriental. Observe-se que, no século XVII, no Vale do Zambeze, em Moçambique, as mulheres adquirem o protagonismo, uma vez que são detentoras de extensos territórios, designados prazos, obtidos por concessão da coroa ou por sucessão.  Essas mulheres, as donas dos prazos,  mantêm um sistema escravocrata para seu benefício e de suas famílias.

Francisca Josefa de Moura e Meneses é uma dessas donas, “suas terras eram sem fim o   rio revugué brilhava ao longe” ( LEITE, 2017, p.39)  e Dona Leonarda, sua sobrinha, esposa de Lacerda e Almeida. É, entretanto, essa mesma dona, Chiponda, a senhora que tudo pisa (Idem.p.45) que, ao ganhar voz, personificando a dona do prazo, como tal se apresenta.

Mas não se abandonam os mitos, não se abandona a tradição, eles se completam na cartografia proposta:

Entre o oriente e o ocidente o reino de prestes joão ou as minas do rei salomão o

ouro, o ferro eu cobre

muenoputapas, zimbábués, muzungos , expedições,

demandas de lugares e mitos, lagos e lagoas interditos

caravanas, travessias, fronteiras entre os rios conhecidos e os ocultos

viajantes, botânicos, filósofos, matemáticos, percorre as terras do interior

desenham mapas, declives, correntezas

aprimoram os instrumentos, ensaio desenhos

se embrenham na indistinta massa de paisagens indecifráveis

com suas bússolas de prata

e um óculo de ver ao longe

espreitam observam catalogam

experimentam mapas e revolvem a imaginação […]

(LEITE, 2017, 41)

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