Paisagem com janela dentro

Jane Tutikian[1]


Uma visada no panorama geral da poesia moçambicana é o suficiente para a percepção de um número reduzidíssimo de mulheres.  As razões são aquelas amplamente conhecidas e especialmente difundidas por aqueles que trabalham com as questões de gênero. Gosto, entretanto, muito da forma como a romancista Paulina Chiziane coloca a questão em uma entrevista concedida a Ingrid Fagundes, para a BBC Brasil (POP & ARTE), em 30/10/2016. Ela vai direto ao ponto, de uma forma muito simples, ao falar da tradição. Esclarece Chiziane que os chamados textos sagrados oprimem a mulher. Neles, o homem vai para o céu, a mulher, para o inferno. Mais ainda,

No nível de tradições e religiões, já existe um menu daquilo que a mulher deve pensar. Pensar em cozinhar, em se pentear bem, mas ter liberdade para pensar outra coisa fora da casa e das obrigações familiares não é muito comum. Muitas sociedades não permitem, e as mulheres acabam ficando confinadas nesse mundo pequeno. (CHIZIANE, 2016)

Há, porém, aquelas que conseguem, como a própria Chiziane na prosa, romper com os limites tradicional e socialmente impostos e o fazem com uma sensibilidade não raras vezes engajada e com muita qualidade. São todas mulheres fortes. No domínio da poesia destaco três poetas na literatura moçambicana: Noémia de Sousa (1926-2002) Glória de Sant’Anna (1925-2009) e Ana Mafalda Leite (1956).

Se o despertar para a consciência nacional e a consequente luta pela libertação nas, então, colônias de língua portuguesa, tem sua origem na poesia, Noémia de Sousa está lá (V. Mensagem da CEI [2])  desde o início, vivendo, denunciando o drama africano e contando uma história de lutas pelo fim da opressão, pela liberdade do povo em pleno colonialismo português.  A prisão política – Noémia era membro do PCP[3] – com toda a degradação humana que a envolve e a resistência estão na sua poesia.

 A moçambicanidade se confunde com a própria poeta e a define. No poema “ Se me quiseres conhecer”,  sua cor e corpo são descritos pela tradição artística do lugar de origem, mas  também se define  na representação ancestral das máscaras e mais: “ Torturada e magnífica/ altiva e mística, / África da cabeça aos pés, /— Ah! , essa sou eu.” (SOUSA, 2001, p.49)

 Noémia ficou conhecida, a partir da observação de Zeca Afonso (autor de “Grândola Vila Morena”) como “a mãe dos poetas moçambicanos,” e trouxe, de fato, à cena a poesia feminina de Moçambique, protestando, inclusive, contra opressão exercida sobre as mulheres naquela, então, colônia. Seu único livro, publicado no Brasil em 2016, é Sangue Negro e foi organizado, em 1988, pela Associação dos Escritores Moçambicanos.

Em outra perspectiva do fazer poético, com uma poesia lírica fortemente centrada no eu, a grande poeta é Glória de Sant’Anna, portuguesa que viveu  em Moçambique  de 1951  a 1974,  e deixou uma obra significativa.

Para a poeta, a essência da vida e das coisas é “senti-las tão densas e tão clara/ que não possam conter-se por completo/ nas palavras” (SAN’ANNA, 1965, p.43),  ou seja, importa mais o silêncio, o não-dito.  Isto porque é nele que reside a essencialidade do ser, do ser poeta e da dialética estabelecida entre a interioridade e a exterioridade e a busca da harmonia entre ambas.

Mesmo ao falar da guerra (“Soldadinho”) ou do preconceito racial, há o filtro da emoção: “E ambas estamos certas/ – tu, negra e eu, branca -/ que é dentro dos nossos ventres/ que germina a esperança”.  (SANT’ANNA, 1965, p.16) 

Glória de Sant’Anna é a melhor expressão do intimismo da poesia feminina moçambicana.

Ana Mafalda Leite, por sua vez, pertence à linhagem das duas grandes poetas, traz consigo a força da terra de Noémia de Sousa e a sensibilidade em busca da essência de Glória de Sant’Anna, com quem compartilha, também, sua vivência em Moçambique, em Moatize, Tete. “ Portugal é” – para Ana Mafalda –  “berço e campo acolhedor de suas pesquisas, e Moçambique é seu chão emocional e cultural, fonte de inspiração poética.” (LEITE, 2017, p.78). É importante que se diga, entretanto, que Leite percorre seu caminho sem abrir mão, em momento algum, de seu registro poético, de seu estilo fortemente individuado.  E é, fundamentalmente, neste excelente livro Outras Fronteiras fragmentos de narrativas (2017) que Ana Mafalda chega à maturidade poética.  Neste livro me detenho.

Na verdade, Outras Fronteiras fragmentos de narrativas começou a ser gestado há muitos anos, talvez toda uma vida.  Ele está, de forma embrionária, nas obras anteriores: Em Sombra Acesa (1984), Canções de Alba (1989), Mariscando Luas (1992, em colaboração com Roberto Chichorro e Luís Carlos Patraquim), Rosas da China (1999), Passaporte do Coração (2002),  Livro das Encantações (2005), O amor essa forma de desconhecimento (2010)  e Livro das Encantações – Antologia (1984-2005), editada em  2010.  Em seu estudo sobre a poesia de Ana Mafalda Leite “Uma pátria chamada poesia” (2014) a estudiosa de literaturas africanas Carmen Lúcia Tindó Secco, ao analisar este último livro, dá conta de um percurso identitário e existencial e observa que, em Rosas da China, “Sentimentos e travessias insulares balizam o lado oriental, apontando para a Ilha de Moçambique, lugar matricial de encruzilhadas identitárias do híbrido contexto-histórico cultural moçambicano […] (SECCO, 2014, p. 6).

 Já em 1997, na apresentação de Ana Mafalda Leite em uma palestra no Colóquio “O papel da Mulher na Cultura Moçambicana na  segunda  metade do século XX” [4],   na  Universidade  Pedagógica –  CCP,   em Maputo,  o livro Outras Fronteiras fragmentos de narrativas  já se anunciava fortemente:

Venho reflectindo já há alguns anos sobre heranças. Não materiais, mas culturais. As reconhecíveis, as irreconhecidas, as irreconhecíveis. Através da literatura e da vida, os trilhos cruzando-se, vou encontrando, pelas diferenças, quantas vezes também, as mais próximas identidades. […] Tradição e reconstrução da memória, longo o caminho, onde os olhos para distinguirem se fazem plenos de aparente cegueira. Porque tradição se faz pelo presente do passado, o mais acalentado sonho a vir.

Há uma casa primordial, um lugar, onde cheguei em estado ainda de pura lactência. É no  norte, perto de Tete. Moatize. Cheguei ignorante de pensamentos e palavras no fim da década de cinquenta. O meu “poema da Infância Distante” para roubar um título à Noémia, são os grandes espaços de uma terra escura do minério, tórrida na sua bebedeira de sol zumbindo os dias, os grandes silêncios de noites povoadas de histórias de animais, de sons alteados… (LEITE, 1997)

Também no belíssimo texto poético “Fronteiras, de que lado pergunto-me” (MUCAVELE, 2013) incluído na Antologia Poética A Arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua repousa uma parte embrionária e importante da mais recente obra poética de Ana Mafalda Leite: “Onde terá começado a fronteira do dia com a noite? A fronteira da água com a terra? A do azul com lilás?” […]  e mais adiante:

sou austral e sou oriente a baunilha de madágascar exala-me devagar muitos desertos apetecíveis sou ocidente e morde-me na boca um papiro de apagada escrita alexandria?  atravesso-me nos céus a sul um cometa que passa: ano nyenyeza dizes-me  foi quando? a luz irrompe em múltiplos lugares estranhos estou em casa sempre

[…] por isso na areia desenho rotas ruas endereços que não existem procuro as montanhas sagradas da angónia as pedras gigantes que sobem as escarpas do interior de outros úteros ainda mais recônditos (LEITE, 2017, 35, 36)

Importam essas colocações porque, heranças, mitos, ritos, memória, casa primordial, identidades fronteiriças e encontro compõem o substrato dos fragmentos de narrativas de Outras Fronteiras. Substrato expresso e consolidado pelo talento e a qualidade que caracterizam a poética de Ana Mafalda Leite.

“A manhã do tempo” é o próprio despertar. O poema de abertura, “Como se a manhã do tempo despertasse” (LEITE, 2017, p.10), oferece ao leitor os indícios das marcas cartográficas percorridas pelo sujeito lírico em Outras fronteiras fragmentos de narrativa, para onde ele, o leitor, é levado.

O verso “saberei porventura os lugares de onde fala essa voz?” (Idem.Ibidem) corrobora o entendimento de Bachelard, em sua Poética do espaço (2005), de que os lugares é que retêm o tempo comprimido. Indo além, se a memória não registra a duração completa, e estou pensando na duração bergsoniana (1998), uma vez que não há como reviver as durações abolidas, então, o inconsciente permanece nos lugares de onde fala essa voz.

Perceber a paisagem e abrir sua “janela dentro”, através da poesia, é revivificar e ressignificar pela estética “a paisagem antiga nesse lugar do coração.” Não raramente, esse lugar é lugar e origem.

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