[…] Meu País dentro.
Um navio navega-me longe. Costeiro. Procurando uma rua que me leve até ti.
Nada lhes digo. E para que serviria se para eles não podes ser visível?
Há nesse lugar do coração uma paisagem antiga
sempre presente
uma flor de frangipani ou de buganvília? branca rosa vermelha amarela lilás
que nunca morre
Há uma paisagem antiga nesse lugar do coração […]
(LEITE, 2017,11)
Há, entretanto, mais: a abertura da “janela dentro” se dá através de um ser aparentemente cindido. Aparentemente, há, na poesia de Ana Mafalda Leite, a cisão entre sujeito empírico e sujeito lírico. A própria Ana é nominada: “respiro-te Ana como se respiram as manhãs” (Idem. p.12) ou “O que fazes aí Ana?” (Idem. Ibidem). Acontece que o sujeito lírico é grande demais, ele tudo pode e, o seu criador, apenas senti-lo. Como a poética de Ana Mafalda quer mais, e o sujeito lírico é que tem os lugares, dá-se a transfiguração dentro do próprio fazer poético: o sujeito que se quer empírico torna-se, no ato da escrita, também sujeito lírico, na medida em que o primeiro deles estende a Ana a paisagem:
Vês? Estendo aqui a paisagem. Para que vás comigo até lá
fátuo incêndio astrolábio
breve passagem
É uma janela que se abre
em fogo queimada ao longe ardendo
noite cheia de estrelas iluminada noite acesa
obscuro mundo em festa
desmesurado o coração estremece e atravessa paisagem
O coração pulsa sem medida. Sentes?
cintilando
reverbera no centro da minha testa
vês?
uma maravilhada estrela
ponto e porta
a infância o infinito
entra por aí
(LEITE, 2017, 14)
Lá é Moatize, vila da Província de Tete, onde o sujeito empírico transformado em sujeito lírico passou a infância e parte da juventude. O conjunto de poemas – “Tratado das cores em Moatize” (LEITE, 2017, 15), “Estudando o mapa estelar em Moatize: no princípio fomos azuis” (Idem. p.17), “Era assim na aula de desenho: azul ultramarino” (Idem.p.19), “Em Moatize um primeiro caderno: o livro dos azuis” (Idem.p.20) e “Teoria das cores ou o primeiro olhar” (Idem. p.16) – recria o mito da origem, e das cores.
Se a neutralidade é obscura, as cores espalhadas por uma nova visão trazem consigo o poder da aclaração e, nesse sentido, dentre as cores, a cor azul, a última a ser nomeada, é no Oriente, uma cor sagrada.
O conjunto dos quatro poemas encerra com “Em Moatize um primeiro caderno: o livro dos azuis”:
de azul em azulazul índigo azul
carvão azul cobalto azul de azul azulando azúleo
azula-me de azuis azulíssimo azulindo Azulbrilhante azulcéu azulrio
azulmeianoite azuldia azultarde azulmeio-dia azulágua
azuladademora azulão azulinho azulalto de azul
em azuis vestido azullua azulsol azulestrela azulgira
gira que gira girando o azul
rotação roda riso rodando sem rumo o feitiço desta escrita
(Qual escrita? Afinal era esse o efeito do feitiço na escrita?
Transmutação?)
(LEITE, 2017, 20)
Um belíssimo poema feito de aliterações e de repetições, que adquire um ritmo febril, circular, “gira que gira girando azul”, alucinante, materializando no ato criativo e no ato da leitura “o efeito do feitiço na escrita”. Esse efeito se pergunta e se afirma como transmutação, e transmutação na magia-feitiço é sempre nascedouro do novo. É quando a poeta nos coloca na travessia do portal, região fronteiriça e início da viagem.
Moatize, a origem. A viagem, estática: “na varanda da casa percorro o universo” ( Idem. p.24)
Segundo Machado e Pageaux (2001), a viagem estática ou imaginária, fruto da memória e da criação, é interrogação sobre o universo em geral, na medida em que propõe um percurso iniciático. Como tal, inicia-se na casa, que é mais do que casa, mais do que vila, mais do que região, é país-universo.
Para Bachelard – e o conjunto de poemas sobre Moatize corrobora esta ideia – todo o espaço verdadeiramente habitado traz a essência da noção da casa: “A nuança não é uma coloração superficial suplementar. Portanto, é preciso dizer então como habitamos nosso espaço vital de acordo com todas as dialéticas da vida, como nos enraizámos, dia a dia, num canto do mundo”. Segundo o filósofo, “a casa é nosso canto do mundo. Ela é, como se diz freqüentemente, nosso primeiro universo. É um verdadeiro cosmos. Um cosmos em toda a acepção do termo.” (BACHELARD, 2005, p.24)