Enumeração Declinada da Rosa

Luís Carlos Patraquim


Na poesia de Ana Mafalda Leite surge uma obstinada “guardadora da infância” num puro e perverso jogo.

Onde fica a nacionalidade de um autor, de alguém – um ser de palavras – que, ainda por cima, é poeta, variação infinita, combinatória inaugural de outra realidade para além da casa e do mundo. Ou, qual é a casa do poeta que a palavra diz, nomeando-a, única, estritamente aquela e não obstante plural? A língua é a nacionalidade como quer a estafada – e mal compreendida – frase de Bernardo Soares, o escriturário cansado?

Em “Rosas da China”, Ana Mafalda Leite opera uma deslocação de sentido. Nascida em Portugal mas desde de tenra idade a viver em Moçambique (província de Tete), toda a sua mundivivência se faz no espaço do Índico, não obstante a sua obra não denotar “explicitamente”, ao gosto dos estudiosos africanistas, nenhum sinal onde, desde logo e por decreto, lhe poderia ser outorgado “passaporte” literário moçambicano. Mas é de um cosmopolitismo, bem na respiração de alguma da melhor poesia da terra, que a sua proposta se vem inscrevendo embora não se pretenda, aqui, persistir no equívoco dessa outorga, porventura pouco imaginativa. Et pur, paralelamente ao seu percurso poético, a autora de “Canções de Alba” vem trilhando um coerente esforço de honesto estudo sobre as literaturas africanas de língua portuguesa, com destaque para José Craveirinha, mas também Rui Knopfli ou Pepetela. E nessa só aparente disjunção algo de misterioso ocorre – se vem vindo plasmando – sobretudo desde o poema “Noivas”, incluído em “Mariscando Luas” – (des)glosa em contraponto com a pintura de Roberto Chichorro – numa espécie de ritual, dança, louvação nupcial em direcção a uma mestiçagem integrando, num erotismo iniciático, tanto a pertença vivencial afro-europeia quanto um mais amplo quadro de referências poético-literárias. Não por acaso, essa aproximação se reitera em “Rosas da China” tanto na “Carta”, substituindo prefácio, do moçambicano Eduardo White, exímio e obsessivo descobridor de pontos de fuga, mapas da carne inaugural do mundo, como na calculada deriva de vozes que este livro convoca em obsessiva e declinada enumeração: Florbela Espanca, Carroll, Sophia, Mariana Alcoforado, Pessoa/Bernardo Soares, disseminação de imagens em livre citação para uma outra combinatória.

Ao cosmopolitismo atrás referido se pode acrescentar, em estesia, tensão, ténue fio de Ariadne desdobrando-se em desconcertante proposta, a recorrente imagem da menina-noiva-princesa-amante-à-espera, onde se move uma obstinada “guardadora da infância” num puro e perverso jogo de absoluta e primeva inocência. Algo também recorrente, se em toda a poesia do vasto mundo, também na moçambicana. “Habitante da velha casa da linguagem” a poeta feiticeira / fada (boa? má?) se interpela em “as vozes de Alice”: “boa noite bom dia sempre menina flor / como tens passado – vão os ventos vêm as ondas / o sol brilha / tens ainda pouca idade e o tempo não passa nunca / chega ao pé de ti como se fosse a eternidade / vou-te oferecer um ursinho e também vou brincar / contigo / agora é o esconde esconde outro dia será a ver se / me agarras / cabra cega cabra cega adivinha quem não vês / adivinha quem não sabes no centro do / mundo há um rosto vendado que olha para ti // (…)”. É para desvendar essa esfinge, esse rosto que somos e que nos vê em labiríntico reflexo de espelhos que existe a Rosa: “eu sou a rosa na rosa / rosa rodada rodando rosas / te quero rosa-mundo rosa dos ventos / outra rosa não quero / de ramo em ramo / o coração traz inteiro / o ramo das rosas todas centradas no centro / de te ser / rosa (…)” até ao remate da “rosa floribunda odoratissima”. Na organização do volume surgem, depois, “As Falas da Princesa”, “A Voz Aparecida” e “As Belas Acordadas”. Segue, assim, este livro de Ana Mafalda Leite por vários caminhos que se bifurcam, entrelaçam, recomeçam e invocam uma pluralidade simbólica, dual, onde a dimensão amorosa/erótica busca sua luminescência absoluta. “Em Sombra Acesa”, “Canções de Alba” e agora “Rosas da China”, não sendo tríptico, assumem-se como variações por enumeração/declinação para uma “plenitude, de algum modo, platonizante”, como escreveu João Rui de Sousa no prefácio a “Canções de Alba”, um “prendre sens d’un l’insensé”, como dizia Éluard, mais depurado, mais simples, aproximando-se de um dizer, ora denso, quase rarefeito, ora de verso largo, por vezes coloquial ou beirando uma espécie de odorífera sensualidade em livre jogo de transfigurada citação.

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