Das rosas da China aos bicos de lacre

Ana Mafalda Leite, Rosas da China, Lisboa, Quetzal (1999)

Maria Armandina Maia


Numa espera sem tempo nem lugar, Ana Mafalda Leite colhe, com aprumo de mestre, velhas lições para o seu “bouquet” de rosas, por sua vez colhido de entre os mais ricos odores, quase bordado na memória da autora, em tecidos preciosos, diáfanos véus evocadores de um território para lá da transparência,  zona por onde esvoaçam sentidos e segredos inaudíveis ao comum dos mortais, os que não guardam nas caixinhas de música sussurros e murmúrios, nem páram para escutar os sinais, a luz da lua cheia, a origem das águas que correm, as vozes que perpassam nos corredores fundos e luminosos, e que sempre nos conduzem a um outro lado, onde a vontade e o desejo, harmoniosamente, se confundem, tornando amena a espera.

A felicidade com que se “abre” o texto, com “os rios de luz que correm a terra”, deixa imediatamente entrever a firme intenção da poeta se reconciliar com o mundo, arrastando consigo os outros, numa roda mestiça nas origens, nas suas cores e nos seus sons, através da difícil arte de reafirmar conciliar valores, reafirmando a sua unicidade, fiel à ambivalência entre o Índico e o Atlântico que lhe correm nas veias, ou, mais em profundidade, entre a terra e os mares que a rodeiam, sempre:  “Tenho o mundo inteiro correndo neste rio em que/ te sou barco e levo-te no tempo ao /coração da água/ à alma do mundo à aura da terra”. 

Toda a semântica do texto remete para um encontro tão precioso que ocupa as mãos, os gestos e a mente da amada, a encontrar nichos, onde guardar um amor tão raro, que a obriga a polvilhar o ar de pétalas e a fazer brilhar o chão com pedrinhas de brilhantes, para mostrar o caminho e o aliviar de toda a dificuldade no seu achamento. Por isso as rosas deverão estar imaculadamente limpas de espinhos, perfeitas e belas para serem colhidas.

Debruçada está a princesa, na sua encenação sobre os preparativos do leito nupcial, onde só repousará o herdeiro das memórias guardadas pelas suas “falas de princesa”, detentor dos mistérios da sedução  e da pureza original – “serei princesa de um príncipe que me mereça”- desdobrando as dobras dos lençóis de uma alcova perfeita, onde a sensualidade trespassa a cada sílaba, e cada verso vai ganhando força no caminho, um irresistível apelo às sensações todas, sem reservas, com a atitude de entrega que se exige de uma preparação iniciática.

O estado de abandono só permite ao poema ganhar segurança, pelo que a própria poeta beneficia deste estado de graça, que aflora numa espécie de aura virginal, visível no comedimento de tudo o que diz, e no próprio êxtase que nesse dizer perpassa. Por isso, os Bicos de Lacre incendeiam a escrita de Ana Mafalda Leite, que desfolha o poema com a contenção erótica de aprendiza de um  Mestre, que lhe ensinou as velhas e sábias lições da arte da sedução, enquanto o seu corpo, o seu verso, parece dispor-se à entrega, ao seu senhor, ao poema, que na sua posse há-de adivinhar-lhe os desejos adiados, presentes, numa intemporalidade que só acentua as certezas desta amante: “ vagueio-lhe o corpo em lua/ desapareço-me em bruma/ adormeço alta/ quando acordo sei que virás de novo / sempre/ luz no interior das águas sonhei/ obscuras dentro”. 

A luz do luar, ou o brilho do sol, favorecem a aparição de fadas e outros entes, cuja sensibilidade e doçura perpassam o poema como lanças que não ferem mas, momentos há, em que “escurecendo o horizonte”,  assomam vultos “vestidos da noite longamente”. Aqui comparecem, inevitavelmente, os medos que sempre nos acompanham e a inquietação de algumas vozes trespassadas pelo eco da  dor e da ausência: “roda e torna a rodar este tempo/ impossível de recusar/ roda e torna a rodar/ para que no centro páre/ este abraço abraçado por abraçar”

Se o nome de Florbela se “lê” com maior nitidez, a autora traz até ao texto, na sua prolongada escuta, a evocação de muitos outros que a trouxeram até ali e, por isso, temos a impressão de folhear, de vez em quando, neste poema,  uma página que parece fora do seu lugar. Mas só na aparência isto acontece, porque o todo do poema é feito da lembrança e da evocação de mestres, como de resto bem sabe a aprendiza, que é a princesa, mestra por sua vez de outras sabedorias,  como a da oralidade, da tradição popular, cuja sombra é permanente no conto que aqui se conta.

Entre a inocência de esposa e o erotismo da cortesã, este corpo poético e textual deixa-se enfaixar por véus que pressupõem a doce descoberta da nudez. Nada nos é dito do seu rosto, e da sua voz sabemos só o que ela nos anuncia, voz aparecida, cumprindo-se, assim, a função de mistério e de densidade que a autora parece ter desenhado para o seu cenário, que nos deixa à espera de mais textos como este, em que o sonho voe tão alto, sem qualquer concessão no que respeita à enorme qualidade literária que – curiosamente, como dizia há dias um senhor num encontro de poesia – pousa no poema com tal simplicidade que fala dos e aos sentimentos. Não sei se pode querer mais bençãos para uma mão que contou um conto. 

De fadas, já se vê.

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