Se cheguei como espinho venho coberto de rosas

Ana Mafalda Leite e sua deslumbrante e assustadora poesia

Silviano Santiago


Acaba de nos chegar de Moçambique, via Portugal, um assustador e deslumbrante livro de poemas. Trata-se do Livro das Encantações (Lisboa: Caminho), de Ana Mafalda Leite. A poeta nasceu em Portugal, foi levada menina e moça para as águas africanas do Oceano Índico, ”em que uma vez mais voltou a nascer”. De lá saiu aos 18 anos e hoje, além de poeta, é ensaísta e professora de Literatura em Portugal.

Os poemas de Ana Mafalda Leite nos convidam a costear o continente africano pela banda oriental, a fim de desbravar o ”índico interior” daquela que se cala ao ser inquirida se européia ou se africana. Silencia-se diante da saliência alheia porque há muito adotou como pátria a ”língua bífida e em fogo”, esta que ”acasala seres bifrontes, monstros de um hermes apátrida”. Natural que a primeira das duas partes do Livro das Encantações indague e se deleite a falar das ”Genealogias”. Evidente que o primeiro poema tenha por título ”Naturalidade”, no sentido de local onde se nasce. Já ali Ana Mafalda suplica ao leitor para que não consulte os cartórios da vida, a fim de poder-lhe confessar: ”na verdade não escolhi o mapa e detesto que os lugares me prendam ao chão”. Sua certidão de idade poética reza que há, no entanto, ”uma terra e uma pátria em que eu pouso devagar, me reconheço e desconheço, escriba acocorado enrubescendo a língua de amorosos sabores, de vibrados ritmos”.

A terra natal de Ana Mafalda é a pátria dos versos de amigos e conterrâneos seus, como Rui Knopfli, Luís Carlos Patraquim, Glória de Santana, Filimone Meigos, todos eles a escrever poemas ”no chão da casa móvel” que os atravessa em sonho. Não se estranhe que Ana Mafalda, como está no poema ”Tenho o nome de um barco”, complemente os dados de identidade, afirmando: ”nasci entre fronteiras líquidas entre ondas inventei um berço”. Em desesperado exílio, Claude Lévi-Strauss anotou no seu diário de viagem esta frase que faz coro aos versos de Ana Mafalda: ”o barco parecia-nos morada e lar, em cuja porta o palco giratório do mundo tivesse instalado a cada dia um cenário novo”.

Ao contrário do barco Lévi-Strauss e do barco nosso brasileiro, que apenas sulcam mediterrâneos e atlânticos, o barco Ana Mafalda oscila pendularmente entre o Atlântico e o Índico. Por isso, reconhece: ”lua nova sou/ quando só lua cheia”. Ou: ”por este espelho me olho e vejo do outro lado”. Ou ainda: ”por mim que espera todas as noites de luar/ um imbondeiro alto na outra margem do mundo”. A ”fronteira líquida de dois mares” faz com que o sujeito hiberne ”neste azul vivo que corta como o gelo num dia de sol”. Nessa língua bífida e em fogo é que foi escrito um dos mais belos poemas da língua portuguesa: ”Maçanicas berlindes amargam devagarinho na boca”. As saudosas maçanicas da infância amargam no ontem/hoje/amanhã e a poeta deixa que ”brinquem sabores”, enquanto olha ”a noite mansa que se ajoelha / a seus pés”.

Nessa língua pendular, onde a experiência e a memória, através dos cinco sentidos, performam toda a diversidade num só ato, ”cose-se a dobra do tempo em costura” e, pelo milagre da poesia, ”frente e verso coincidem”.

Ao transpor a primeira parte do livro, parei por um instante assustado e deslumbrado com a poesia de Ana Mafalda. Assustava-me a mais absoluta falta da paisagem urbana. Assustava-me porque me acostumei, nos acostumamos a viver em megalópoles enraizadas em cimento armado, tijolos, telhas, cores artificiais, automóveis, aviões… O Livro das Encantações me assusta e, pelo avesso do cotidiano nosso carioca, me encanta. Num mundo que é balas perdidas, estilhaço e violência, palavras que falam do amor e da completude do ser agigantam-se e tomam conta da segunda parte do livro. Falam do amor que é, como diz Octavio Paz, ”morte e alegria, solidão e comunhão”.

O livro passa a ganhar sustança no terreno alagadiço da fala lírica embriagada pelo vinho oriental, terreno personificado pela palavra poética tão bailarina quanto um pião nas mãos de criança ou uma dançarina de dança do ventre no salão mundano. Nesse terreno, o corpo lírico, também embriagado e dançarino, recebe e acolhe as encantações que caem, abre-se a elas, metamorfoseia-se nas multifárias formas, cores, sons, que a natureza – o cosmos – nos prodiga desde que abrimos os olhos, nocauteados pela feiúra da ação do homem sobre a natureza. Ao ler o Livro das Encantações somos fascinados pela beleza natural, que nos rodeia envolvente, aveludada e alvissareira, fabricada de encanto e mistério. Lê-se o idílio em ”Estação das chuvas”: ”entrego-me aos braços das árvores descubro o rosto das / buganvílias entrelaçado em mãos de amarelos girassóis / lançados pela varanda ao vento”.

No Livro das Encantações, nada distingue o corpo agreste/silvestre/cósmico feminino da natureza que nos vê a todos nascer, alimentar, enxergar, tocar, amadurecer, embebedar, amar, crescer e, um dia, morrer. Leiamos: ”Meto-me pelo rio o corpo flutuante / ancas cingidas de trepadeiras e flores de fogo / uma chuva cintilante no entardecer perfumo a sombra / tateio muros frios quem sabe sou já apenas lenda”. Continuemos: ”em êxtase bebe-me a água viva sedenta que bebo”. Encontremos: ”como pode o amor girar em tanta alegria / ora lento ora intenso sem distinguir a noite do dia? / o compasso dos olhos é o compasso das estrelas”. E mais: ”culpas a beleza que te dói / não sabes que a beleza é tirania? / o desejo dela eternidade?” Chegamos: ”deixai-me dançar assim em torno de mim sem parar”, ”roda que roda / sempre a girar”.

No poema ”Do outro lado, a sul Trópico de Capricórnio” revela-se uma faceta que até agora tinha ficado à sombra: ”dizes-me então que te apaixonaste por uma jovem / muçulmana que dança a dança do ventre e súbitos saris / esvoaçam entre nós”. Sob o sortilégio da dança, a amada pede ao amado para ser ”a voz que dança nesse ventre que abraça o teu olhar maravilhado”.

A por assim dizer genealogia poética de Ana Mafalda traz os seus emaranhados jogos pendulares, que traçamos pobre e esquematicamente, e tem ainda o seu norte na tradição lírica de Luís de Camões e da mexicana Sor Juan de la Cruz, de que são exemplo estes versos: ”Oh chama de amor viva / vivo sem viver em mim e tanto espero ao viver / que morro por não morrer”. E tem finalmente o seu sul no Oceano Índico real ou lendário, com os poemas de amor de Ibn Hazm (”O colar da pomba”), as odes ao vinho de Ibn Fârid, a lírica religiosa e mística de Khalil Gibran, os gazais de Hâfez Shirázi e as ”quadras” de Omar Khayam, popularizadas no Ocidente por Edward Fitzgerald e traduzidas entre nós por Otávio Tarquínio de Souza. Infelizmente os últimos poetas citados são pouco conhecidos de nós brasileiros, razão maior para se dedicar à leitura dos poemas de Ana Mafalda Leite.

Ao enxergar o pendular e caleidoscópico entrelaçamento de tradições poéticas tão diversas e fumegantes, vê-se o que constitui o forte do trabalho poético de Ana Mafalda Leite e de outros poetas moçambicanos. A mescla candente e original, bífida do ponto de vista da língua, leva a poeta a desenhar de forma notável os contornos da sua arte poética: ”uma palavra feita de fogo na minha boca/ nos meus lábios invento a chama/ uma palavra tem de beijar a outra/ acendê-la em mágico incêndio”.

Nos poemas de amor, mais salientes na segunda parte do livro, a mescla de tradições poéticas se aninha no entrelaçamento dos corpos feminino e masculino e com eles se casa. No espanto e na embriaguez, se metamorfoseiam um no outro. Ambos os corpos num único: ”sou eu que fala ou ele por mim?”. Ou tornam-se inseparáveis, como que presos ao círculo de fogo do amor: ”a amada é um círculo que não está em parte alguma / a circunferência está em toda a parte”. Dispersa em pétalas, a amada escuta as palavras do amado: ”minha amada a dor tem a sua beleza pois se cheguei como / espinho venho coberto de rosas”.

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