O verbo amar se anima da minha eternidade

Prefácio de Silviano Santiago ao Livro O Amor essa forma de desconhecimento, de Ana Mafalda Leite.


Enganam-se as poéticas clássicas quando nos levam a crer que o poeta, graças às múltiplas e inesgotáveis flores da retórica, concretiza para o ouvinte ou leitor sentimentos e emoções que esclarecem e iluminam abstrações, cujo significado atiça a imaginação alerta do ser humano, aqui e agora, sempre. As flores da retórica apenas obscurecem o sentido original de palavra ou de frase que têm seu significado autenticado e reconhecido pela experiência lingüística de cada um em seu cotidiano. Como assevera o poeta e romancista cubano Lezama Lima, fiador emérito das flores da retórica, “somente o difícil é estimulante; somente a resistência que nos desafia é capaz de assestar e manter nossa potência de conhecimento…” (Expressão americana).

De imediato, sentimentos e emoções materializados em imagens poéticas apenas transportam ouvinte ou leitor – pelo viés da objetivação ou da concretude – a domínios obscuros da linguagem, ou seja, a uma forma subjetiva e sedutora que, nas boas hipóteses, convida o leitor ou o ouvinte a percorrer o caminho infatigável do conhecimento. De imediato, só são facilmente inteligíveis e consumíveis as flores da retórica que se tornaram lugar comum na já bem catalogada estocagem poética lírico-sentimental do Ocidente. Só o banal – só o que ganhou status de topos na retórica clássica – é logo descodificado pelos ouvidos ou pelos olhos.

Já vestir o lobo de inesperada pele de tigre equivale a torná-lo – de imediato – um animal desconhecido ao leitor ou ouvinte. A longo prazo, equivale a tornar estimulante e resistente a forma lingüística lobo em sua nova roupagem de tigre. Por que tigre? É preciso que a imaginação contraída e em polvorosa do leitor atravesse com os ouvidos ou os olhos atentos a inesperada e original espessura semântica (pele de tigre) do vocábulo lobo. O ancestral do cão doméstico se metamorfoseou em locução estimulante e resistente. Se recobríssemos o ser humano com a pele de lobo – sabe-se –, entraríamos de imediato no clichê que, desde os latinos até Thomas Hobbes, embala e adormece o imaginário humano – Homo homini lupus. Não será este o caso em teste na nova coleção de poemas de Ana Mafalda Leite, O amor essa forma de desconhecimento.

Nos poemas recentes de Ana Mafalda, várias situações dramático-poéticas estarão em jogo, uma delas já recoberta por nossos parágrafos de abertura. É infinito e na maioria das vezes previsível o elenco das imagens poéticas que atestam a incontornável experiência humana do amor. No entanto, mais os poetas o interpretam (e é disso que, no fundo, estamos falando, com a ajuda carinhosa do Livro do filósofo, de Nietzsche, [1] e da leitura que Gilles Deleuze fez do pensador alemão), mais o (objeto, sentimento, emoção, etc.) interpretado se distancia do mundo lingüístico de domínio público para se tornar terra ignota da linguagem literária. Por o amor se apresentar como terra ignota – na proposta poética de Ana Mafalda – é que o leitor atende ao canto das sereias (isto é, ao canto das flores da retórica) e embarca no veleiro da leitura de O amor essa forma de desconhecimento.

Recorde-se Carlos Drummond de Andrade: “Leituras! Leituras! / Como quem diz: Navios… Sair pelo mundo / Voando na capa vermelha de Jules Verne” (“Iniciação literária”). Citem-se versos de Ana Mafalda: “navio em que partes quando chegas / em que ao chegar já vais partir”. Ou estes outros: “o barco em que embarco desembarco sem porto”. Ou finalmente: “a espera é a única forma de chegar”.

Dizer que o amor é uma forma de desconhecimento – lemos ao final do poema de abertura do novo livro de Ana Mafalda – é atirá-lo para o limiar do não-consensual e do não-sabido pelo leitor. Tal operação permite que, ao se tentar circunscrever o amor com imagens – circunscrevê-lo uma vez mais e sempre, esclareça-se -, afigura-se a necessidade de avançar obscuros e incógnitos sentidos que, eventual e paradoxalmente, esvaziarão o vocábulo-chave do consensual e do sabido. A operação visa a colocar o amor “em estado de laboratório”, como dizia Sarah Kofman ao se referir às preliminares da interpretação do “caso” em Freud. Essa estranha e auspiciosa contabilidade poética – preencher para esvaziar – está apresentada e descrita em “Coração adiado”: “é tudo demais / mesmo o que é de menos / está tudo errado / mesmo o que é certo / é incerto falar”.

Há, pois, que se tomar o devido cuidado – no incerto falar de Ana Mafalda – com o peso e o sentido do verbo esvaziar. Não significa necessária e obrigatoriamente retirar tudo o que estava contido, para deixar o continente vazio por dentro, oco. E por cuidado recomenda-se que se consulte T. S. Eliot e se leia o poema “The Hollow Men”: “Let me also wear / Such deliberate disguises / Rat’s coat, crowskin, crossed staves / In a field / Behaving as the wind behaves”. [2] Em termos de linguagem poética contemporânea, esvaziar significa que tudo o que até então era dado como contido no reservatório imagético do sentimento amor, “sobra / está de fora” – virou e é disfarce, pele de tigre. O sentido esvaziado passa, então, a perambular pela superfície exterior do vocábulo amor, “behaving as the wind behaves”. Perambula de modo diaspórico ou desterritorializado: “em exílio” – continua o poema inicial do novo livro.

Esvaziar significa, pois, exigir do leitor que se desvencilhe das várias camadas interpretativas – devida ou indevidamente interiorizadas pela tradição – no vocábulo lobo, a fim de que se chegue a conhecer com propriedade e riqueza a pele de tigre que, esvaziado o conteúdo banalizado pelo correr dos séculos, passou a recobrir o que “está de fora” do lobo. “Let me also wear / Such deliberate disguises”. Assim como a pele de tigre enfeita ou enfeitiça o corpo esvaziado ─ hollow ─ do lobo, o amor, se in deliberate disguises, enfeita ou enfeitiça os olhos do leitor, já que se lhe aparece de modo “estimulante” e “resistente”, para retomar a palavra de Lezama Lima: “é estrangeiro / é estranho”. Ou como está dito no poema “Estrangeira condição”: “aqui estou eu fora de mim / […] fora das fronteiras / fora das esferas/ […] fora de tudo”. Na estranha e auspiciosa contabilidade poética de Ana Mafalda, noves fora, o sujeito.

Esvaziado, o amor pouco se explica pelos sentimentos, sensações ou emoções do sujeito que julga contê-lo – sentimentos, sensações e emoções ditos íntimos. Repita-se: o sujeito está fora de si, fora das fronteiras estabelecidas pelo lugar comum da linguagem cotidiana, fora das esferas terrestres que enfeitam por enfeitar, fora de tudo. Não é aconselhável acercar-se da intimidade do sentimento ou da emoção do amor pelo viés da palavra substantiva ou adjetivamente privada. A ingenuidade e a espontaneidade do escritor – o gorgolejar ininterrupto das entranhas em poema ─ sempre traiu a escrita sobre o amor, embora sejam elas bem-vindas nas ridículas cartas de amor. “As cartas de amor, se há amor, / Têm de ser ridículas” (Fernando Pessoa).

O poema de abertura da nova coleção de Ana Mafalda diz, e com clareza, que o amor existe “fora de ti”. O gargarejar do íntimo pode ser ou é força vital (cf. “tu a força animal a conduzir o sol”), mas não é forma poética e muito menos é entendimento, já que “o amor caminha cego / é um perdido // não sabe caminhos / nem mapas”. Regressemos em pedido de socorro a “The Hollow Men”: “Shape without form, shade without colour / Paralysed force, gesture without motion”. [3]

A experiência por que passa o poeta lírico ao enfrentar o amor como forma de desconhecimento é semelhante à perda da bússola por parte do capitão do navio. Sem a segurança dos mapas e dos caminhos de há muito traçados e palmilhados pelos antigos aventureiros da linguagem, a informação dada pelo instrumento náutico se torna infecunda. Há que se arriscar em novas e audaciosas perambulações, a esmo. O amor como forma de desconhecimento é matéria da desorientação em busca de oriente. Desde o Livro das Encantações (2005), Ana Malfada Leite insinua: Que o ocidente se oriente! O jogo de palavras nos faz lembrar não só da canção de Gilberto Gil (“Se oriente, rapaz”) como também de parte da poesia ocidental no momento da descoberta californiana do Oriente (a de Gary Snyder, por exemplo) e, ainda, os poemas de Ana Mafalda banhados pelo oceano Índico, que costeia a Moçambique de fala cultural predominantemente atlântica. [4]

Releiamos os versos que vimos lendo passo a passo. São os finais do poema de abertura de O amor essa forma de desconhecimento:

amor não está aquém
não está além
sobra
está de fora
em exílio
            é estrangeiro
                        é estranho
fora de ti
            o amor caminha cego
                        é um perdido
não sabe caminhos
                        nem mapas

Fora de ti, o amor se semantiza nas leituras do próprio poeta, ou seja, em textos poéticos alheios que serão devidamente domesticados pela pele de tigre, de que valerá Ana Mafalda em seu novo livro. Voltemos ao poema de abertura:

Nas tuas mãos se lembra
Por isso escreves
Não é dom
            É dádiva que recebes
Agora que me ouves
                        Ao ouvir
O mundo
Um livro se abre
Página a página o vento o escreve e dita

A pergunta sobre o que seja o amor como forma de desconhecimento – e a resposta correspondente – estão entre parênteses em outro poema do livro e, pelo viés da metáfora selecionada pelo poeta, atestam a favor da mulher como objeto do desejo masculino:

(o amor? essa evidência da mão brotando rosas de fogo…).

Em termos de leitura, ou de erudição, há uma evidência poética incontornável – da mão que escreve o amor em letra masculina brotarão rosas de fogo, “rosasderosas”. Não há, pois, como não ter como primeira pedra no meio do caminho – isto é, não há como não repetir em O amor essa forma de desconhecimento – o poema greco-latino de Ricardo Reis: “As rosas amo do jardim de Adônis”. Do amor que se lê e que Ricardo Reis re-escreve se diz que ele, o amor, como as rosas do jardim de Adônis, vive o espaço duma manhã. [5]

Do poema de Ricardo Reis, Ana Mafalda retira a epígrafe de poema seu, que lhe cai como pele de tigre: “essas volucres, Lídia, rosas…”. O poema de Ana Mafalda enfatiza o adjetivo volucres, efêmeras, e determina com precisão Lídia como interlocutora do poeta/homem, até porque em Lídia já está inscrito o “dia”, espaço temporal em que vivem as rosas.

Segundo a tradição e Ricardo Reis – este espécie de pele de tigre do lobo Fernando Pessoa -, se muito se sabe do dia das rosas, nada se sabe de seu lado noturno: “que em o dia em que nascem, / em esse dia morrem / a luz para elas é eterna, porque / nascem nascido já o sol, e acabam / antes que Apolo deixe o seu curso visível”. A favor do poeta/homem, o amor tem batalhado pela beleza feminina (daí a imagem-clichê da essência das rosas – a beleza) e contra o império da noite em seu percurso-guilhotina pelo mundo. Para as rosas, isto é, para a jovem e bela mulher enquanto objeto do amor masculino, a noite é morte e, ao findar na aurora seguinte, é possibilidade de ressurreição. Há noite antes e após o existir das rosas, há morte antes e após o nascimento do amor, há noite antes e após o existir do amor para a mulher, se objeto do homem. Florescência e assassinato – Achtung! Que as rosas sejam precavidas e atrevidas! Seize the Day – como diz o tópos em inglês, a ser endossado pela mulher voluptuosa e volúvel, que se torna aberração do tópos.

No espaço de tempo do durante (perdurante o dia) – masculina é a luz sob o signo de Apolo e eterna o é sob o signo de Adônis. A beleza feminina, no entanto, é efêmera, passível de ser eliminada pela guilhotina criminosa e máscula da noite. Ela dura e perdura na perda intermitente do olhar masculino, isto é, ela só perdura enquanto houver a possibilidade do retorno da luz (“tu a força animal a conduzir o sol”). Se a intermitência situa a mulher (as rosas rubras do jardim de Adônis) na plenitude de cada durante, ela também ativa – pela negatividade – o lado escuro e obscuro do amor que é de mulher. Da perspectiva masculina, o amor tem a forma e a cor dadas pelo sol (Apolo). A face escura do amor, face obscura, só é palpável, palmilhável, pelos olhos femininos que perscrutam em vão o universo ao “luar da terra – ao clair de terre, como escreveu André Breton, brincando com o clair de lune simbolista.

No livro que se abre, o tópos é, pois, clássico (colligo rosae). Não haveria por que Ana Mafalda repeti-lo à moda de Ricardo Reis, a não ser pelo lado obsessivo da linguagem poética feminina, que rechaça a fôrma latina e autoritária de justapor vocábulos na frase. Rechaça a sintaxe latina e as alusões clássicas para acatar e trabalhar a aliteração – vale dizer, a repetição desrespeitosamente feminina do cânone – como estratégia poética que acentua/resolve o enigma da retomada do amor como experiência da noite (ou do obscurecimento do sol, Adônis).

No poema de Ana Mafalda, as letras V e L se esgueiram através do adjetivo volucres e do nome de Lídia e rezam uma ladainha pagã, sem fim, mas que pouco arreda o pé do que a epígrafe e o poema de Ricardo Reis reclamam como modo de re-circulação do amor na poesia lusófona. A forma rosas, as rosas se tornam doentias – se me permitem o exagero – “contagiantes e “contaminosas. Leiamos:

volucres volúteis
voluptuosas rosas
lúbricas lucilantes
lucífluas luminescentes
[…]
lucívagas vagam
vogam lucentes
as rosas iluminadas

As rosas, que foram colhidas no jardim de Adônis, passam a ser iluminadas – à semelhança da lua ou das estrelas – pela aliteração de V e de L, obsessiva, que percorre, semanticamente, toda uma gama de apreciações do amor, que o leitor terá de descodificar a partir da leitura atenta de cada vocábulo aliterado.

Pelo jogo V/L, como não se lembrar da definição de Roland Barthes, em S/Z, do que seja uma obra de arte clássica (ainda) passível de ser re-escrita. Pergunta ele – e Ana Mafalda: “quais são os textos que eu aceitaria escrever (re-escrever), desejar, impor como uma força nesse mundo que é o meu?” Pelo viés da tradição lusitana, Ana Mafalda re-escreve o poema re-escrito de Ricardo Reis faz parte. Pelo viés da contemporaneidade (des)compromissada com a noção de gênero (gender), o outro poema que Ana Mafalda re-escreve está assinado pelo poeta inglês W. H. Auden.

Bye bye Adônis e Apolo. As rosas e o amor passam a ser iluminados pela noite, pela lua, pelo clair de terre – “gosto do cair da tardenoite”, “eu procuro ainda o princípio da noite”, “gosto de me cobrir da noite / e lenta espalhar/ a luz da minha lua crescente”, “incandesce a lua”, “a noite cobre-me / lenta em seu lençol de murmúrios”:

O que olhava tinha a face do amor
Face intocável e presente lua nova lua cheia

O segundo dos textos que convida Ana Mafalda à re-escritura, o de Auden, é alheio à tradição neolatina e se escreveu originalmente nos meandros anglo-saxônicos da dicção cotidiana, low profile, elementar, palpável por um e todos, dicção reverenciada por Jacques Prévert em seus poemas cantados e falados e pelos poetas modernistas brasileiros na fase 1920/1940, poemas bem humorados e iconoclastas. [6] Estamos nos referindo ao poema “O tell me the truth about Love”, que – pelos versos “Some say that love’s a little boy / And some say it’s a bird”, em epígrafe ao texto de Ana Mafalda, – inaugura os 27 poemas que, juntos, compõem a parte da coleção de poemas obrigatoriamente intitulada “Estrangeira condição”. Leiam-se os dois primeiros versos do poema 8: “Estrangeira condição / diz Ela”.

junto a ti amor invento uma pátria
e não tem nenhuma língua porque as tem a todas.

O segundo jogo intertextual proposto por O amor essa forma de desconhecimento é interlingüístico – “não tem nenhuma língua porque as tem todas”. Deste poema, salta à vista na epígrafe escolhida por Ana Mafalda uma notável aquisição para a língua portuguesa e para os poemas até então escritos pela autora. Refiro-me ao pronome it. Usado como sujeito de verbo, o pronome it – segundo a Enciclopédia Britânica – é empregado em referência a algo sem vida (uma casa), a uma planta (uma roseira), a um animal (um gato) ou a uma pessoa cujo sexo é desconhecido ou desconsiderado (don’t know who it is), ou a uma entidade abstrata (a beleza, ou o amor).

No jogo interlingüístico, tudo se conjuga para que a dominância do que signifique o amor e a beleza – e outras abstrações – seja recoberta pelo pronome it, que várias vezes se intromete na construção do longo poema de Ana Mafalda, a lembrar, na condição de sucessivas citações de Auden, de sua existência inapelável em todas as línguas. A dominância do pronome inglês obriga Ana Mafalda a explicitar – em português – os pronomes sujeitos da língua de Ricardo Reis, no momento de suas responsabilidades. Não é estranho, pois, que os pronomes sujeitos apareçam na página poética lusófona com definida marca de gênero: Ele e Ela. [7] Em inglês, it: “I looked inside the Summer-house / It [o amor] wasn’t there” (Auden). O amor (it) depende do estágio do corpo em litígio com o corpo desafiante. Não há pedras marcadas pela tradição poética (“não há memória que recorde”), ou se as houver, elas serão imediatamente classificadas pela fala respectiva (des)compromissada com o gênero.

Diz Ele […]
Algures no tempo Ela, a voz dizia […]
diz Ele
                        Ou diz Ela […]
Diz Ele
            Ou Ela? […]

E assim ad infinitum. Nos 27 poemas, as marcas de gênero são precisas e o leitor terá de acompanhá-las por todo o longo percurso para o melhor entendimento da originalidade poética de Ana Mafalda.

Não há porque interceder a favor de um (Ele) ou da outra (Ela), de uma (Ela) ou do outro (Ele), não há porque interceder a favor do it. Nesse momento da escrita poética interlingüística, tudo se passa num equilibrado tabuleiro de xadrez verbal. No litígio corporal que acontece na página, os vocábulos têm gosto e têm sustância, embora cada palavra, cada pedra em jogo não tenha – em si – a própria essência discernível pela inteligência. Pelo uso obsessivo do verbo dizer, há um tagarelar do Ele e do Ela, que perpassa distintamente as figuras do it, colorindo-o, multicolorindo-o lusofonicamente. (“preciso de uma terra onde pernoitar as cores que tanto exclamam”). O amor sabe a, sem saber se sabe se.

gosto de ti e tu não sabes
gostei de um outro e ele não soube
gostei gostei
e agora lembro que talvez esse gosto não fosse verdade.

“Nesta cegueira de não ser”, no gostar que talvez não seja verdade, o amor sacia, é apetitoso e é alimentício, embora a nenhum caminho leve, a não ser às núpcias do prazer, onde se oferecem ao paladar a comida que martiriza os sentidos em rebeldia ao modo opressivo da imaginação incandescente, que a tudo indaga. “Oh tell me the truth about Love”.

quem sabe? vou achar conchas ressoando
aquilo de que não sei o nome

Embora visionário, o amor não é visão: “o caminho sem rumo / secreta magia”. É tato, é olfato, é audição, é paladar à espreita. Movimento, volteio, cor, sensualidade, êxtase. Associado ao it, o amor se desanda (precipita-se impetuosamente) feminina e masculinamente no verbo amar.

é pelo infinitivo presente que se chega ao verbo amar
diz Ele quando lembra outra coisa
para além do nome

O substantivo amor – até então designado pelo it – perde o contorno rigoroso da distinção por gênero, se abstratiza ainda mais no infinitivo presente, que traz em si – apenas como possibilidade – ser conjugado em diferentes modos, tempos, pessoas e formas nominais.

é talvez lugar de sonho

amar

Resta à Ela e ao infinitivo presente do verbo amar (apenas) o consolo companheiro de um advérbio (sempre, por exemplo), que fará o amar perdurar num universo noturno, escuro e obscuro, destituído de todas as amarras circunstanciais que lhe foram, são e serão impostas pelas flores da retórica masculina. A forma de desconhecimento do amor se escreve pelo infinitivo presente do verbo amar, que se anima do advérbio sempre e da eternidade (beleza) dita pela Mulher.

devagar reflicto
no verbo e no tempo
e não sei em que tempo me conjugar
será que o espírito se anima de um advérbio
sempre?
amar é estar sempre em todos os tempos?
assim escrevendo o verbo amar se anima da minha eternidade
diz Ela

Silviano Santiago, Março 2009


[1] “Acreditamos saber alguma coisa das próprias coisas quando falamos de árvores, de cores, de neve e de flores e, no entanto, apenas possuímos metáforas das coisas, que não correspondem de modo algum às entidades originais”.

[2] Na tradução de Ivan Junqueira: “Que eu possa trajar ainda / Esses tácitos disfarces / Pele de rato, plumas de corvo, estacas cruzadas / E comportar-me num campo / Como o vento se comporta”.

[3] “Fôrma sem forma, sombra sem cor, / Força paralisada, gesto sem vigor”.

[4] A respeito do Livro das Encantações, escrevi: “Os poemas de Ana Mafalda Leite nos convidam a costear o continente africano pela banda oriental, a fim de desbravar o ‘índico interior’ daquela que se cala ao ser inquirida se européia ou se africana. Silencia-se diante da saliência alheia porque há muito adotou como pátria a ‘língua bífida e em fogo’, esta que ‘acasala seres bifrontes, monstros de um hermes apátrida’”. Jornal do Brasil, “Suplemento Idéias”.

[5] Alusão, por sua vez, aos conhecidos versos de François de Malherbe e assim infinitamente: “Et Rose elle a vécu ce que vivent les Roses, / L’espace d’un matin”.

[6] Apenas a título de lembrança cite-se o curtíssimo poema de Oswald de Andrade: “Amor / humor” (Primeiro caderno do alumno de poesia Oswald de Andrade).

[7] Tanto o pronome masculino quanto o feminino, quando se referem a seres humanos, aparecem sempre em maiúscula no texto. Et pour cause…

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