Metamorfoses

Literaturas Africanas e Formulações Pós-Coloniais

Russell G. Hamilton[1]


O volume sob consideração inclui 11 ensaios em que Ana Mafalda Leite analisa as de autores da África lusófona, especificamente de Moçambique e de Angola. Não obstante o destaque das literaturas africanas de língua portuguesa, a base te­órica, o processo crítico e o contexto sócio-histórico e cultural, que constituem a abordagem metodológica de Ana Mafalda Leite, dão fé ao título do volume. De fato, um dos méritos mais salientes do livro é que em termos conceituais Ana Mafalda

Leite coloca as literaturas africanas de língua portuguesa no contexto mais amplo das literaturas africanas em geral. Em todos os quatro capítulos ou divisões que constituem o volume, a autora faz referências relevantes às literaturas da África francófona e anglófona. No seu texto, Leite cita, portanto, tais estudos essenciais como Littératures d’Afrique noire de langue française, por Jacques Chevrier, e The African ‘Experience in Literature and ldeology, da autoria de Abiola Irele.

Assim como o livro é fiel à primeira parte do seu título, Literaturas Africanas…, o conteúdo do discurso também confirma a segunda parte do título, …e Formulações Pós-Coloniais. E em «Literaturas Africanas e Pós-Colonialismo», seu capítulo introdu­tório, no primeiro parágrafo da subseção titulada «Pós-colonialismo, um caminho crítico e teórico», Ana Mafalda Leite assevera que «(f]alar de pós-colonialismo e lusofonia ou da adequação das teorias pós-coloniais às literaturas africanas de língua portuguesa ainda é área não muito concep­tualizada.» (p. 11). Ela logo afirma [n]ão sendo nosso intuito clarificar todas as problemáticas inerentes à já relativamente longa duração e produção teórica neste campo, tentarei situar algumas questões respeitantes aos conceitos de origem anglo-saxónica e seu interesse, adequação, e formulação relativamente aos estudos literários africanos lusófonos.» (p. 11). Com respeito à suposta origem anglo-saxónica d9 pós-colonialismo, muitos acham que Orientalism, o conhecido livro da autoria de Edward Said, deu origem à teoria pós-colonial. O já clássico Orientalism foi pu­blicado em 1979 e o recém-falecido Edward Said, embora um professor numa universidade norte-americana, era natural da Palestina. Outros, concordando, porém, com a asserção da origem anglo-saxónica do conceito, acreditam que o primeiro texto a elaborar uma teoria pós-colonial é The Empire Writes Back: Theory and Practice in Post-Colonial Literatures, publicado em 1989 por Bill Ashcroft, um professor britânico, Gareth Griffiths e Helen Tiffin, professores australianos. Aliás, Ana Mafalda Leite cita e parafraseia tanto o livro de Said como o de Ashcroft, et aI. Seja qual fôr a origem da teoria, Leite demonstra um conhecimento profundo do conceito, e ao abordar as relevantes questões teóricas ela coloca o seu processo crítico das literaturas africanas lusófonas no devido contexto de formulações pós-coloniais.

Além de seguir pelo caminho da teoria e crítica pós-coloniais, com discernimento Leite também aborda formulações com respeito às literaturas africanas, com uma ênfase, naturalmente, nas de língua portuguesa da pós-independência. No seu segundo capítulo, «Configurações Textuais da Oralidade no Cânone Moçambicano», a estudiosa analisa os gêneros orais repre sentados em Terra Sonâmbula, a obra prima de Mia Couto, sendo ele um dos melhores e mais prolíferos contadores de histórias, ou, melhor, de estórias, da África lusófona pós-colonial. Também analisada no capítulo 11, no âmbito da oratura e dos contadores de histórias, é a obra de Paulina Chiziane. Devido, em particular, a Niketche, Uma História de Poligamia, a sua obra mais recente, Paulina Chiziane já ocupa um lugar bem merecido ao lado do seu patrícia Mia Couto e outros conceituados ficcionistas de Moçambique da pós­-independência. Ana Mafalda Leite fez bem por ter optado analisar a obra de Mia Couto e Paulina Chiziane, pois as suas es­tórias são representativas, até a quinta-es­sência, da oralidade e da genologia, isto sendo a ciência dos gêneros literários. Ultimamente, a convergência da oralidade com a literatura, resultando na oratura, tem sido um assunto de muita importância entre escritores dos Palop e estudiosos que se dedicam às literaturas africanas de lín­gua portuguesa.

Em «Questionação do Cânone His­tórico Colonia!», o seu terceiro capítulo, Leite também escolheu bem quando optou analisar A Gloriosa Família. Esta obra, por Pepetela, o conceituado e prolífero escri­tor angolano, é um dos melhores exemplos da ficção histórica. Outra obra que Leite analisa desde a perspectiva da re-escrita e re-leitura da história colonial é A Lenda dos Homens do Vento, da autoria de Fer­nando Fonseca Santos. Confesso que antes de ler a avaliação feita por Ana Mafalda Leite, eu não sabia da existência dessa obra em particular de Santos, um escritor nas­cido em Angola e que atualmente mora em Portugal. Também confesso, porém, que aquilo que Leite escreveu sobre essa narra­tiva histórica me motivou a adquirir e ler os dois volumes desse dramático tratamen­to ficcional, mas convincente e estetica­mente gratificante, de eventos históricos decorridos no Sul de Angola na primeira década do século xx.

Em «Percursos Pós-Coloniais da Poesia Moçambicana», o quarto e último capítulo do seu livro, Leite recorre a temas teóricos e processos críticos relevantes. Referindo-se à obra de vários poetas mo­çambicanos, mas efetuando análises mais detalhadas da poesia inovadora de Luís Cados Patraquim e Armando Artur, Leite aborda a questão de diversas formulações pós-coloniais. Vale a pena notar que além de ser uma crítica literária estabelecida, Ana Mafalda Leite é uma poeta talentosa, com pelo menos dois volumes de poemas publicados, o último sendo Passaporte do Coração. É com certeza o seu reconhecimento do poder de palavras e do ritmo inerente em linguagem que leva Leite a escrever numa forma tão esclarecedora sobre tais temas com as convergências entre o tradicional e o moderno na obra de Luís Cados Patraquim, Armando Artur, Eduar­do White e outros poetas moçambicanos, e também ficcionistas como Mia Couto e Paulina Chiziane, do período pós-colonial contemporâneo.

Igualmente discernente e cativante, no âmbito do processo crítico, é «Poéticas do Imaginário Elemental na Poesia Mo­çambicana – entre Mar… e Céu», a subse­ção final do capítulo IV. Também quero me referir à pré-penúltima subseção em que Leite analisa alguns poemas que metafo­rizam a Ilha de Moçambique, uma área geográfica algo idílica no Norte do país. A respeito de metaforizar a ilha, Leite assevera, de modo percpetivo, que «…0 pro­cesso de mitificação literária da Ilha de Moçambique tem vindo a ser actualizado, e amplificado, nos últimos anos, com maior insistência na obra de vários autores, concretizando percursos alternativos a uma poética, e de cariz ideológico, conferindo uma outra amplitude aos imaginários poé­ticos, e actualizando uma ‘herança’ e tra­dição literárias, muito antigas.» (p. 137).

Concluo por asseverar que a leitura deste último livro de Ana Mafalda Leite deveria ser um requisito para qualquer um que se interesse pelas literaturas de língua portuguesa. Além de ser um estudo infor­mativo e discernente, Literaturas Africanas e Formulações Pós-Coloniais constitui uma leitura agradável, pois a escrita da pro­fessora Ana Mafalda Leite exprime uma erudição instrutiva e intelectualmente estimulante numa linguagem que reflete as sen­sibilidades verbais normalmente atribuídas aos poetas.


[1] Russell G. Hamilton é Professor Emérito de Literatura da África Lusófona, Brasileira e Portuguesa da Universidade de Vanderbilt, EUA. Ele é autor de Literatura Afri­cana, Literatura Necessária: VoI. I – An­gola; VoI. II- Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São-Tomé e Príncipe (1981 e 1983).

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