Espelhos e mapas: a poesia em itinerância

Sara Jona Laisse


Resumo: Com este texto pretendo contribuir com a construção de linhas de significação etnográficas culturais, históricas e antropológicas que podem ser interpretados a partir dos símbolos representados na obra Outras Fronteiras Fragmentos de Narrativas, de Ana Mafalda Leite.  A base teórica desse exercício centra-se no preconizado por Moxey (1994), que defende a liberdade que o leitor tem de, mesmo reconhecendo que a linguagem codificada numa obra de arte é uma mimesis da realidade e não a própria realidade, poder apontar abertamente significados criados em função das suas expectativas sociais e políticas, num processo de desconstrução da obra em análise.

Palavras-chave: nação, texto etnográfico, itinerância.

Breves notas biográficas sobre a autora

Ana Mafalda Leite nasceu em Portugal e cresceu em Moçambique. A sua publicação é vasta e, para os propósitos deste trabalho, irei apenas deter-me na sua obra literária, da qual destaco: Em sombra acesa (1984); Canções de alba (1989); Mariscando luas – em colaboração com Luís Carlos Patraquim e Roberto Chichorro (1992); Rosas da China (1999); Passaporte do coração (2002); Livro das encantações (2005); O amor essa forma de desconhecimento (2010); Livro das encantações, Antologia:1984-2005 (2010) e Outras fronteiras: fragmentos de narrativas, primeiro editado pela Kapulana no Brasil (2017), e em 2019 pela Cavalo do Mar, em Maputo. É por causa destas obras e outras produzidas para enaltecer a literatura, para além do seu trabalho humanístico, que a autora recebeu o prémio “Femina Lusofonia de Literatura”, edição de 2015.

Ainda relativamente aos dados pessoais sobre Ana Mafalda, permito-me falar sobre a ambiguidade relativa à nacionalidade da autora que, por vezes, tem sido questionada. Devo dizer que cientificamente a questão da nacionalidade é indiscutível, se nos ativermos aos pressupostos de definição de nação secundados por Graça (2005), em referência a Fichte que na sua obra Discursos à Nação Alemã (1808), define este conceito utilizando dados objectivos e Renan, na sua obra O Que é a Nação? (1882), define nação, com recurso a questões subjectivas. O primeiro segmento, o objectivo, que é sobejamente conhecido por todos nós e que considera o nativo de uma nação, aquele que nasceu num determinado espaço geo-político, é portador do Bilhete de Identidade desse espaço, no qual também cumpre com obrigações políticas. O segundo segmento, o subjectivo, defende que um cidadão pode escolher, com recurso a determinada afinidade, sentir-se nativo de um certo lugar, e agir como alguém desse ambiente.

Tal como João Paulo Borges Coelho, escritor moçambicano, não discute a sua nacionalidade, eu não discuto a de Ana Mafalda; lembrando ainda que muitos moçambicanos, nascidos na África do Sul ou na Tanzânia e que, por viverem em Moçambique, têm que se identificar como moçambicanos, muitas das vezes, vêem-se na ambiguidade de se assumirem como pertença do local no qual nasceram, por motivos tão fortes quanto o facto de terem o núcleo familiar ou os antepassados do outro lado da fronteira, portanto, nesses países “estrangeiros”.

Lendo este último livro de poemas de Ana Mafalda, deparamo-nos com enigmas, chamo-lhes assim, porque é preciso estar-se atento para entender o sujeito poético num texto que utiliza máscaras, imagens ou fantasia para passar a sua mensagem. Existem, nesta obra em análise, muitos trânsitos, tanto temporais quanto histórico-geográficos e culturais. Há muitas fronteiras por ultrapassar e a reflectir, entre as quais, quem não tem passaporte não as transpõe. Refiro-me especialmente aos códigos culturais e históricos ligados ao nyau, representados por Ana Mafalda neste livro e que devem ser lidos à luz de conhecimento histórico-antropológico.

Tratarei então de derivar sentidos ou conceber uma rede deles, lembrando Barthes (1966:43-70); para isso, irei socorrer-me dos quatro momentos que compõem o  livro, a saber: “Como se a manhã do tempo despertasse”; “Poemas de Moatize”; “Outras fronteiras: fragmentos de narrativas” e “o Índico em Marrakesh”. Assim para estudar cada uma das partes vou organizar e desenvolver o meu texto em quatro partes/ títulos que sistematizam o conteúdo de  cada  uma  delas,  nomeadamente  1)  Espelhos  e  mapas:  questionamentos  e  revelações; 2) Máscaras, memórias e sonhos: da infância e da Humanidade; 3) Mapas e viagens: História e Antropologia; 4) Viagens e itinerância: sonhos e tratados eróticos.

Espelhos e mapas: questionamentos e revelações

O livro começa com o poema “Como se a manhã do tempo despertasse”, em que há   um sujeito poético que indaga e procura:

Saberei porventura os lugares de onde fala esta voz? Os/ enigmáticos espelhos de (onde se olha)? (p.13)

Para além da pergunta em si, há um símbolo, neste verso, o espelho, que inevitavelmente transporta consigo significações sobre identidade, auto-conhecimento, imagem de si. No mesmo poema, podem ser encontrados

mais símbolos com um sentido similar, nomeadamente: sonho, cegueira, surpresa, propondo-se talvez o sujeito dramatizar a noção do ser, num desdobramento de si como personagem:

pareces uma paisagem com uma janela dentro, contas… (p.13)

Além disso, são referidas partes do corpo humano no poema, com o propósito de despertar sensações. São elas: os olhos, o nariz, as mãos, a boca e o coração. Estas partes do corpo são algumas vezes representadas pelos respectivos sentidos: visão, olfacto, tacto, paladar; quando não mencionados objectivamente, são transmitidos por imagens que os substituem, tal como no verso

pelo ar corre uma secreta ânsia
talvez de
beber inteira, (os itálicos são meus) (p.13).

No segundo poema, a dimensão interrogativa continua e sugere algumas das revelações do espelho. Além de ser apresentado como algo que nos questiona, é colocado como revelador, através do recurso a cores e a luzes:

vês? Estendo aqui a paisagem. Para que vás comigo até lá,
fátuo incêndio astrolábio
breve passagem
é uma janela que se abre
em fogo queimada ao longe ardendo
noite cheia de estrelas iluminada noite acesa
obscuro mundo festa
(LEITE, 2019, p.17-18)

Há imagens de uma espécie de cenografia ou palco, em que uma janela é poeticamente a abertura para a nova paisagem, que se dá a ver e que se faz ouvir, ou que permite a entrada em espaços outros, que se iluminam e acendem. É a mesma voz aludida no poema anterior e que neste começa a ser revelada.

Não estando explicitamente presente o espelho, no terceiro poema, há imagens e temas que o representam, ao apresentar-se o conhecimento inicial das cores, o nascimento da visão  e dos trâmites que irizam as paisagens da infância. Assim, surge um tratado de cores e leia-se nesta linha de pensamento as páginas 19 e 20

newton escreveu Que a luz
consiste em pequeninas partes de matéria que saem de um
corpo lúcido em todas as direcções […];
[…] caem os raios da luz maior é a
refracção.

Estas passagens reforçam, no fundo, a função de revelação e de auto-revelação do sujeito e do espaço, a que me referi anteriormente.

Há também, nesta primeira parte do livro, imagens do planeta azul e da ozonosfera com as suas diferentes cores luminosas, incluindo o preto do buraco negro, um conhecimento que surge da infância, em que a paisagem se torna escola e sonho. Há viagens e trânsitos entre o céu, a terra e as minas de Moatize, que nos permitem reflectir sobre a formação das cores, com ênfase no azul e a alusão a Newton, por ter sido ele quem descobriu o espectro visível. Leiam-se ainda os seguintes versos no poema “Estudando o mapa estelar em Moatize no princípio fomos todos azuis”, (p.22), diz-se:

o Virgílio dizia negra azul eu digo somos todos azuis
mas interessa saber a cor do universo?

A referência ao título do poeta Virgílio de Lemos, parodiza as distinções demasiado plenas, subvertendo o esquematismo das diferenças das cores, e porventura também raciais, e apela à irização do olhar enquanto diferença e amplitude cultural.

No poema “Estudando o mapa estelar em Moatize: no princípio fomos azuis”, não estando claramente mencionado o espelho, encontramos um derivativo com similares funções, o mapa, que orienta, situa, guia, revela, mostra, ou integra a imagem/identidade no espaço. A tónica dos poemas que se seguem é a mesma, a do interrogar e a do revelar, há lexemas e expressões indicadoras desse processo de revelação entre sujeito e espaço, e embora haja a referência à noite, ela surge iluminado-se, e as palavras e expressões de força, nesses versos, são os que convidam ao despertar e à visão/ revelação.

Máscaras, memórias e sonhos: da infância e da Humanidade

O segundo momento deste livro socorre-se do recurso à memória. Há tentame de reconstituição da infância e de mitos de origem da Humanidade. Em “Poemas de Moatize” encontramos um sujeito poético que, continua a questionar a origem, mas, desta feita, pretende ser guiado em parte pela memória. Há representações da sua infância matriz, desse espaço identitário (procurado nas cenografias do espelho em mutação) em revelação/visão. Há também imagens desfocadas por recuperar, daí afirmarmos que há um recurso à memória. Os dados observados são fragmentados, tal como a narrativa que os “conta”.

Senão vejamos: no primeiro poema, “Moatize: onde tudo começa”, a origem, o gênesis pessoal é afirmado, aí o sujeito poético dá início a tudo aquilo em que ele se vai tornar; no segundo poema, “Moatize: campo de ténis” há um sonho, uma imagem de movimento e trânsito simbolizadas pelo saltar da bola de ténis: […] “Ai eu de um lado para o outro sou jogada/Ai eu que me olho a ir e a vir […]” (p.30); ainda no poema “Moatize: casa sem número ou inumerável casa” há a confirmação de que esta parte do texto aborda a infância: “misturo tudo nesta infância sem trégua” (p.31), permitindo-nos entender a interpenetração dos fragmentos da memória dessa infância, actualizada nos textos.

O poema “Rio Moatize” traz-nos imagens de uma sensação que se tem, quando se é criança, como correr ao lado de um rio ou de uma árvore, fica-se com a percepção de que estes espaços e paisagens correm à medida que o sujeito corre, no entanto há a indicação da permanência de alguns elementos como o imbondeiro e o da mutação e passagem como o do rio e do próprio sujeito. Veja-se o verso: […] “ele e o crocodilo conhecem o sortilégio do tempo/ não correm como eu e o pequeno rio moatize” (p.32). Na verdade, o apelo à meninice começa no agrupamento anterior, no qual o poema da p.25, intitulado “Em Moatize um primeiro caderno: o livro dos azuis” e o ritmo sugerido é o de brincadeira de crianças, pelo brincar experimental e lúdico com as palavras e com as cores.

Esta é a parte do texto que essencialmente representa o passado, não apenas do sujeito poético, relativamente a algo que tenha vivido, mas também o da Humanidade, leiam-se os versos que seguem dos poemas intitulados “A lenda da criação”, “Quando o camaleão e deus deixaram a terra” e “Poemas do Nyau, a grande dança” , p.33, 35 e 36, respectivamente que dizem:

as rochas ainda mostram as antigas pegadas, uma cesta uma enxada e um pilão
em harmonia sagrada […]
O homem sentado brincou com as varetas
e delas surgiu o fogo…

O apelo ao antanho e à memória são essencialmente metáfora de viagem pelo conhecimento cultural de uma memória do lugar, e é isso que a terceira parte do texto aborda, retoma-se o passado, acrescentando-se-lhe elementos que permitam a reconstituição da história e da antropologia deste lugar matricial, vivenciado pelo sujeito poético.

No que respeita à Antropologia, por exemplo, o sujeito poético, recorre à dramatização das falas das máscaras, algumas das quais nos remetem à discussão sobre uma sociedade igualitária, em termos de género. Há, por exemplo, a referência ao nyau, que é, na vida real, uma dança de uma sociedade secreta de homens, que em 2005, foi elevada a Património Cultural e Imaterial da Humanidade. É uma dança feita com recurso a diferentes máscaras. Os homens dançam, por várias razões referidas em Manjate (2014, p.15-21), que refere que o nyau tem três aspectos que o explicam: a exibição do poder político, a fome e as brincadeiras infantis.

No que se refere ao poder político, esta dança é considerada como a que se supõe tenha surgido na altura da formação do Estado Undi, por volta do séc. XVI, com a supremacia dos Undi sobre os Kafula. Quanto à questão da fome, o autor refere que terá sido a escassez de alimentos que criou uma cisão na harmonia social entre as mulheres e os homens. Elas, que controlavam o poder pela comida, pedindo aos homens que fossem à procura de alimentos. Eles, inspirando-se na lenda kaphirintiwa, faziam-se passar por animais, para assustarem as mulheres e terem o que comer. Encontramos na página 36 uma representação deste aspecto que vale a pena citar:

danço a noite toda Venho assustar os dias Venho assustar as
mulheres Roubar-lhes a comida
elas fogem espavoridas chegaram os monstros, os espíritos dos animais, dos homens misturados
centauros quizumbas…

No que diz respeito à versão sobre as brincadeiras, a dança surge inserida nos ritos de iniciacão, através dos quais são transmitidas normas sociais de vária índole (religião, os mitos, a música e a dança, tradicionais, leis, sexualidade, restrições à vida sexual ligada a rituais fúnebres, administração de recursos, etc.). Ao fazer a representação do nyau e das máscaras,  o texto nos remete para a questão ligada à passagem de conhecimento, por via dos ritos de iniciação, na sociedade chewa:

olha os meus trejeitos ouve a minha voz e segue-me
os meus olhos faíscam e trazem luz eu sou a máscara kapoli/ espírito antigo
que dança ensina e adormece (p.35)

A p.37 é também representação de uma brincadeira de crianças que pode ser integrada nesta categoria do nyau – rito de iniciação.

A autora deste livro deixou nestes poemas também um mapa cultural que nos ajuda a trilhar o caminho para o conhecimento de parte da cultura dos grupos étnicos do Complexo Zambeze e Marave.

Mapas e viagens: História e antropologia

Em Outras fronteiras: fragmentos de narrativas somos convidados a fazer uma reflexão sobre os tratados e marcos históricos que dividiram o mundo: o tratado Tordesilhas e o mapa cor-de-rosa são os referentes que nos levam de viagem para outras épocas do passado histórico e para a questão da demarcação de fronteiras histórico-políticas, sobretudo às demarcações das fronteiras de Moçambique. Como sabemos, não obedecendo a questões culturais, houve com o colonialismo a criação de fronteiras artificiais que fizeram a separação de culturas e de grupos étnicos, que sendo os mesmos, do ponto de vista socio-cultural, passaram a ser distinguidos por demarcações político-históricas. E o poema “Fronteiras, de que lado pergunto-me”, ajuda-nos a compreender a sugestão acabada de dar:

em ponto pé de roseta ziguezague em duplo nós elos em cadeia raiz quadrada
noves fora sempre indago a matemática sem resultado será que é indígena?
será que é alienígena? Será que é? […] dádiva nas mãos em concha vem uma mudança no tempo alimentar o espírito
diz a sua boca nyau que me fala através das pedras.
(LEITE, 2019, p.44- 45)

A demarcação que constitui as fronteiras é tão questionável que o sujeito poético, neste poema, preferiu consultar os ossículos divinatórios, foi “bater pedras”, tal como se tem dito em linguagem popular, para saber que mistério norteou a divisão de África ou do mundo. Os primeiros versos do poema são disso uma ilustração:

Onde terá começado a fronteira do dia e da noite? a fronteira da água com a terra? A do azul com o lilás? Porque tão dividido… (p.43).

Além da demarcação territorial de África e de Moçambique, os poemas de Ana Mafalda Leite nos remetem para a reflexão sobre o mapeamento do ouro nesse país que, sugestivamente, o sujeito poético refere ter sido realizado num momento em que as populações em Tete se deliciavam ao ritmo de tambores e embebecidos pelo pombe:

Em 1798 em Tete olhando as estrelas Lacerda e Almeida/ pensava […]
Sentado e expectante meditava as difíceis caminhadas que o levariam até kambeze
a reinos desconhecidos, a outros povos e costumes
Ouvia os tambores tocando noites sem fim, o pombe enlangescendo os corpos.
Os vultos do silêncio caminhando
Entontecido com milho fermentado
apenas o coração de Lacerda de almeida
se ouvia…
(LEITE, 2019, p.46)

Há também um convite para o conhecimento de questões antropológicas que permitem extrapolar ideias sobre como é que alguns africanos se terão livrado das amarras dos colonos. O poema “Outras viagens, outras fronteiras” faz-nos essa sugestão:

os caminhos são sempre outros, bocas línguas pombeiros sertanejos informantes
desapareceram nos caminhos
zuartes, missangas e espelhos
os escravos fumavam mbangui e  entram  em  debandada
outras  margens se mostram com espíritos locais  que  se  levantavam  abruptos…
(LEITE, 2019, p.50-51).

Continuando nessa região habitada pelo designado grupo étnico Complexo-Zambeze, a questão antropológica mencionada não termina por aí, pela maneira como eram e viviam as populações da região de Tete. Ana Mafalda leva-nos a uma outra viagem para o cruzamento entre a História e a Antropologia. É assim, que qual bússola, a nossa imaginação é levada ao norte do rio, onde havia prazos e prazeiros.

Desta feita, o grupo étnico Marave é destacado de forma curiosa, pouco comum, relativamente aos outros grupos étnicos moçambicanos. Diz o poema:

dos Marave guardo a importância dessa  à  linhagem  das  mulheres
São minhas ainda as terras de fatiota chipasse bomboe nhancoma pande e insufa (…)
casei muitas vezes e muitas outras enviuvei, já nem me lembro bem quantas
os meus fios brancos entranham na cabeça muitas estórias”  […]
Possuo mais de dois mil escravos em trabalho doméstico, agrícola
nas actividades de defesa na segurança das minhas terras
a perder de vista …
(LEITE, 2019, p.54)

E no final da obra, na sua quarta parte, designada “O Índico em Marrakesh” há um outro conjunto de trânsitos e de deslocamentos de e para diferentes lugares: Marrakesh, Ponta do Ouro, Ibo, Quirimbas.

Viagens e itinerância: sonhos e tratados eróticos

Há uma voz, no início da obra, que se questiona e é procurada pelo sujeito poético:

Saberei porventura os lugares de onde fala esta voz? (p.13)

Ao ler-se o poema “Visitação do Índico em Marrakesh” (p.67-68), fica-se com a sensação de se ter encontrado de novo a procurada voz. Entretanto, no discorrer do poema, percebe-se que há uma espécie de enigma sobre o lugar de onde vem a voz, porque ela, parece estar em Marrakesh, ou antes no Índico, em simultâneo nos dois espaços, num trânsito que nos despista.

Parece ser uma voz do além ou do infinito, espiritualizada, a julgar pelos versos que se seguem:

Vês, vejo, entretanto começo a ver, vejo entre o azul a
revelação a voz sem som talvez uma palavra um azul intenso
um céu sem nuvens ou um índico oceano? Que anuncia este
trilho para o deserto/um oásis no caminho de um sonho de pura verdade… (p.68).

  Não se sabe, portanto de onde vem essa voz que, para além de enigmática, é itinerante. É uma voz múltipla no espraiamento pelos espaços.

Do que se pode depreender, na verdade, é que toda esta última parte do livro é um tratado do amor e do erotismo; a linguagem utilizada socorre-se de sensações, hipérboles e metáforas, levando o leitor a compreender a dimensão de mestria da autora do livro em enlaçar o corpo nos enredos amorosos do erotismo, num espaço múltiplo em que a matriz índica se revela “espelhada” em todos os outros lugares.

A alusão ao “Cântico dos Cânticos” sugere a reflexão sobre o facto de que o amor mais puro, mais genuíno, carnal ou lascivo poder ser exaltado de modo elegante e sedutor. Sobre as sensações, vale recordar os versos que nos remetem à paixão e uma das suas consequências imaginárias, a viagem o reencontro dos inícios, das origens, amorosas, que se fundem e se espalham pelo espaço múltiplo, deserto e/ou mar, calor e/ou frio, figuração da intemporalidade, como se lê na página 67:

em Marakesh diz-me o meu amor
que o céu sem nuvens anuncia o deserto. Olho para o azul
intenso e para as montanhas que debruam a paisagem ao/ longe, cobertas de neve e sinto
como o sol arde/ arde o coração com ele o céu imperturbável no seu azul
mirífico espraia-se sem fim/ olho para os teus olhos e vislumbro o deserto longe
uma viagem profética? Um desejo
que ondula com as areias sem
fim encontrar-me sem onde
encontrar-me no tempo de muitos anos, areias sopradas…
(LEITE, 2019, p.67)

Os dois poemas que seguem e que se encontram entre as páginas 69 e 71 vão na linha do que acabei de referir:

aqui em sossego alagoada
dizes-me que o sol queima. É verdade, tanto como aquela/ neve mais atrás
escondemo-nos sob a sombra das oliveiras e a sombra
escalda ainda
aquele pavilhão seria o lugar perfeito
para nos teus lábios a água escorrer de desejo…

A celebração do amor é em especial significada através de um poema do género epitalâmio, um hino para celebrar o casamento, intitulado “o chamamento (Azaan)”, cujos versos, mais do que nos sugerirem aspectos ligados à fé e à reza mulçulmana e católica romana, nos recordam o Cântico de Salomão, o “Cânticos dos Cânticos”, que aparece no poema sobre forma de imagens:

É hora de rezar
é hora de kutub, o livro
é hora de reler o manuscrito do tempo
é hora de olharmos um para o outro, aqui, precisamente
neste lugar que nos trouxe de longe tão perto
(eu sou do eu amado seu desejo o traz até mim…)
a um outro chamamento, estranho chamamento, prece
encantamento
aazan do coração…
(LEITE, 2019, p.73)

Para terminar diria que a poesia de Outras Fronteiras Fragmentos de Narrativas é feita de enigmas, de viagens e de sonhos. Os quatro momentos que compõem o livro interrogam-nos sobre as origens, as identidades e o amor, entrelaçando as temáticas. Sobretudo, está contada a representação de Moçambique, com a menção a nomes concretos de lugares e de grupos étnicos e culturais, lugar matriz da autora. Do ponto de vista cultural o país é exaltado com recurso ao seu património imaterial da humanidade, o nyau, por exemplo.

Há ainda a indicação de acervos históricos que provavelmente possam ser os mapas para descortinar a divisão territorial realizada nesse espaço geográfico, que é actualmente a nação política moçambicana, e a referência do que terá facilitado a entrada dos portugueses no país. Há alusão a documentos que podem ser consultados para reconstituir determinados fragmentos históricos sugeridos, nomeadamente o Tratado de Tordesilhas, o Diário de Lacerda de Almeida, bem como a questão histórico-cultural sobre os prazeiros.

A obra está envolta de citações in(directas) sobre a História, que são reveladas a partir do pano de fundo da memória da infância do sujeito poético, e da reconstituição de uma história de amor idílico, através do ponto de vista do sujeito poético que a conta. Puro amor, que se procura, pela infância, pela terra e pelo corpo, que se tornam mapas, mar, desertos e sonho.

E porque uma história ou memória não são completas, existe o alerta, através do título, que nos indica que leremos parte de uma riqueza que ainda pecisa de ser desvendada, ou seja, temos fragmentos daquilo que se deve saber sobre a História e Antropologia de Moçambique. Há questionamentos e algumas revelações, ficam-nos os mapas para seguir alguns trilhos e criar outros, como, por exemplo, a leitura aqui realizada.

  1. Texto publicado na Revista Mulemba. Consultar em https://doi.org/10.35520/mulemba.2019.v11n21a27697

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