Ana Mafalda Leite: uma borboleta na vidraça

Vera Maquêa [1] 


Uma linhagem de intelectuais contemporâneos – nos lembram Edward Said e Homi Bhabha -, tem representado a pessoa fora do lugar, que vivendo entre dois mundos, ocupa uma terceira margem. São os intelectuais na diáspora. Mas existe uma outra linhagem, a dos viajantes por vontade, por inquietação, estes que navegam na alegria de visitar o outro, de experimentar no outro o seu próprio ser. A esta linhagem pertence Ana Mafalda Leite, uma das mais vigorosas intelectuais do nosso tempo. Sua vida intelectual é partilhada numa diversidade de ações, cuja experiência de haver morado em Moçambique até os quase 20 anos de idade torna mais rica suas perspectivas de trabalho com a linguagem, com a literatura e com a cultura.

Seus estudos iniciados na Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, foram concluídos em Lisboa, na faculdade de Filologia Românica da Universidade de Letras de Lisboa, em 1979, e desde então é professora na mesma universidade. Se naquela época o mundo não tinha fronteiras intransponíveis para a jovem estudante, muito menos o teria depois: deu aulas no Brasil, Estados Unidos, Alemanha, Cabo Verde. Moçambique, Zimbabwe, Senegal. Comparece sempre, numa atividade ininterrupta, a encontros de poetas e simpósios em vários paises do mundo.

          A tradutora: quem circula muito pelo mundo descobre que precisa traduzir e, por vezes, ser traduzido. Ana Mafalda assumiu a tradução na sua ampla significação, como podemos ler em toda sua obra e enfrentou o desafio do trabalho literal do tradutor, escolhendo aqueles para quem a linguagem é também fruição. Entre as traduções que Ana Mafalda realizou para o português, encontram-se  os importantes livros Lição, de Roland Barthes, Lisboa: Ed.70, 1979; S/Z, também de Roland Barthes (em colaboração), Lisboa: Ed.70,1980; Introdução à Cultura Africana de Alpha Sow, Honorat Aguessy e Pathé Diagne ( em colaboração), Lisboa: Ed.70, 1980 e Os Géneros do Discurso, de Tzvetan Todorov, Lisboa: Ed.70, 1981.

          A ensaísta: a escrita afinada com o presente, atual e crítica da literatura, reúne rigor e leveza e mostra que sentido estético e espírito científico  caracterizam a combinação perfeita da produção intelectual de Ana Mafalda. Seu estudo sobre A Poética de José Craveirinha, Lisboa: Vega, 1991 – o trabalho mais completo e vertical escrito até hoje sobre o poeta moçambicano -, é uma referência inestimável para os estudiosos da obra de Craveirinha e da poesia moçambicana. Modalização Épica nas Literaturas Africanas, Lisboa, Vega, 1995, abre novas perspectivas para o estudo das literaturas africanas, ao observar o corte das narrativas grandiosas que, nas marcas da diferença, atravessa romances como Mayombe, de Pepetela.Ana Mafalda colaborou no importante volume The Postcolonial Literature of Lusophone Africa, London: Hurst, 1996, organizado por Patrick Chabal. Quando seu livro   Oralidades & Escritas nas Literaturas Africanas, Lisboa: Colibri, 1988, foi publicado, provocou uma discussão sobre um problema latente nas literaturas africanas, que é a forte tradição da oralidade nestas literaturas. Ana Mafalda se apresentava cada vez mais entranhada nas discussões críticas, com análises inovadoras e provocativas, desenhando um percurso crítico de tal modo articulado aos estudos destas literaturas que já não é mais possivel pensar as literaturas africanas, sobretudo as de lingua portuguesa, sem considerar os estudos dessa voraz pesquisadora. Num de seus últimos livros, Literaturas Africanas e Formulações Pós-Coloniais, Lisboa: Colibri, 2003, essa perspectiva da teoria e da prática critica se consolida como um dos pensamentos mais lúcidos do nosso tempo sobre a literatura de modo geral, e de modo particular, a literatura escrita em lingua portuguesa.

          A poeta: o amálgama do rigor analítico com a leveza da escrita são elementos da crítica que se insinuam na veia poética de Ana Mafalda. Em 1984, numa antologia feita em colaboração com José Manuel Lopes, Cem haiku, Lisboa: Vega, Ana Mafalda estréia na poesia e no mesmo ano publica, solo, Em Sombra Acesa, Lisboa, Vega. Em 1990 recebe a Menção Honrosa Eça de Queiroz pelo excelente Canções de Alba, Lisboa: Vega, publicado no ano anterior. Com dois grandes nomes, Roberto Chichorro e Luis Carlos Patraquim, Ana Mafalda publica em 1992 o Mariscando Luas, Lisboa, Vega.  Rosas da China, Lisboa: Quetzal, sai em 1999 e em 2002, o belo e denso Passaporte do Coração, Lisboa: Quetzal. Na revista “Poesia Sempre”, da Biblioteca Nacional, n. 23 -2006, numa carta a Rui Knopfli Ana Mafalda resume o seu labor poético com poesia: “Chamem-se européia ou africana, que fazer senão calar? Meus versos livres, livres xingombelas, livres pomos, voam sem chão, neste chão que trago por dentro da casa móvel que me atravessa o sonho.”

          A pessoa: seria mesmo possível desdobrar alguém ao infinito? pergunto-me eu, já tomada da poesia de Ana Mafalda. Certa disto não posso estar, quando Ana Mafalda Morais Leite, com sua generosidade intelectual e com a simplicidade dos que são sábios vem para perto de todos nós para ensinar aquilo que não pode ser ensinado senão dividindo a palavra na sua insuficiência e excesso. É quando ela se torna Ana Mafalda, oferecendo a cada um de seus leitores, reflexões sobre a opacidade do mundo como uma borboleta voando toda a transparência da vidraça.


[1] – Profª. da Universidade do Estado de Mato Grosso e doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, pela Universidade de São Paulo.

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