Ana Mafalda Leite, Rosas da China, Ed. Quetzal Poesia, Lisboa (1999, pp. 84)

Urbano Tavares Rodrigues in Colóquio Letras (2002)


O acto de criação estético-literária ou nasce de quase nada, isto é, da própria linguagem, trabalhada pelo poeta ( o autêntico escritor é sempre, em certa medida, um poeta, em ruptura com o já feito ), ou brota do vivido, que alimenta a escrita com experiências próprias, dores, êxtases, decepções, premonições. Nem se pode ver em rigor uma antinomia nestas duas vertentes da criação, porque nas obras maiores elas se fundem harmoniosamente.

Vem esta reflexão a propósito de um belo objecto literário com certas marcas narcísicas e um um considerável desvio da capacidade e necessidade de viver para o acto poético. Refiro-me a Rosas da China, de Ana Mafalda Leite. De algum modo este livro tão delicado, aparentemente fútil, como poderão ser vistos tantos poemas de Mallarmé, feitos como jogo e que todavia tocam o fundo do ser e do não ser, estes poemas hiperconstruídos respondem a m deseo extremo de derramar, como um perfume, a retenção da líbido.

Ao contrário dos que temem mais o acto de linguagem do que a própria acção, a palavra aqui liberta-se e apropria-se de memórias, frustrações, delírios e fantasmas. Assim sucede, por exemplo, quandoa voz enunciadora do poema “livro o Desassossego”, que também fala de rosas e fala do corpo, nos diz “sonhando alto:

… repousa em mim completamente perturbado

em mim inteiro este corpo reflorescendo de mágoa

chove talvez para que pense que tudo passa

mas eu não posso deixar de saber que o que passa

também não passa

e a chuva corre-me toda por dentro

em desacordo levo-me até ti

até mim te trago de tanto

sentir em sonho te guardo me perco por dentro

do esquecimento entre violetas

roas de lírios os cabelos presos desatados às tuas

mãos neste concerto de muitas visões

o coração é estrela da manhã

lume nos lábios e todos os passos

acendem de luz o movimento

 integral em que te escuto.”

Uma das leituras possíveis deste tão suave e dilacerado “desassossego” é a da remembrança do amor feliz no curso do tempo entre sofrimento e arroubo. A esplêndida metáfora com sabor a paradoxo “este corpo reflorescendo de mágoa” encontra o seu correlato semântico na imagem da água lustral, purificadora: “ e a chuva corre-me toda por dentro”.

O encantamento que em nós provoca esta expressão do amor que não se pode expulsar do corpo, sendo este o ser presente e o passado que nele vive e o futuro sem projecto, roçando pelo sonho, pela escuta e pela espera, esse encantamento causado pelo discurso poético que em som e sugestão reformula os gritos, as queixas, os prazeres perdidos, esse encantamento ecoa em todo o livro de Ana Mafalda Leite.

A isotopia floral percorre-o do começo ao fim. Aqui são a violetas, as roas e os lírios. Mas as rosas dominam quase todo o texto, são metonímia de um amor loco, que é também um amor sábio, infinito na perdição: amor-rosa, rosa-amor. A rosa foi já crença cabalística, foi o próprio espectro solar, o tempo breve de uma vida (Ronsard), é símbolo da viagem nestes versos de Ana Mafalda, arrancados à torrente verbal dos rios-risos feitos de luz:

ouvi dizer que o princípio do tempo era o
princípio do mundo
tenho o mundo inteiro correndo nesse rio em que
te sou barco e levo-te ao tempo
ao coração da água
à alma do mundo à aura da terra

Versos esses que rematam com uma perturbante injunção :

acredita no caminho não onde vais chegar

É o amor que importa, o curso da jornada. Porque talvez não haja porto de acolhida.

Os lábios foram feitos para beijar

Perdidamente, como escreveu Florbela. Mas Ana Mafalda recusa o dramatismo de Florbela. Usa outro discurso, mesmo quando coincidem.

Não é uma filosofia da existência que deste livro podemos extrair com segurança, até porque muio nele é controverso, a voz enunciadora quebra-se, reparte-se em várias vozes, sem se dissolver. Torna-se cristalina quando propõe:

apenas ser da água o som da água

o riso do rio que corre levando-te

flor de vento anémona mandrágora

A enunciadora não interpela apena o outro: tantas vezes se dirige a si mesma, ciente, em seu narcisismo ferido e lucidez, que o mundo é antes de mais o seu corpo – toucado de rosas com seus espinhos.

Por vezes Ana Mafalda Leite cultiva o oxímoro em momentos de brincada ironia agridoce:

diz-me coração que rumos são os teus que não

os meus o que procuras que

desassossego te aquieta o coração (…)

Por vezes estes poemas, tão absolutamente pessoais, ecoam a tradição lírica medieval, as cantigas de amigo, ecoam Bernardim , ecoam o Camões  lírico. E não há nisso contradição. É o legítimo e natural diálogo das vozes próprias e alheias, as que ficaram connosco, que vibram na nossa voz, são corpo do nosso corpo.

A sensorialidade superlativa deste livro de penas de amor, de deslumbramentos oníricos “incorpora” as rosas, a água que dança a luz, a delícia, a fragância dos aromas. Recupera do passado o estonteante rondó, metáfora do prazer da entrega, da embriaguez erótica:

senhor de mim por dentro

me faça rodar

muito junto

em torno

ao lado

o tempo todo de amar

Os romances do romanceiro, a frivolidade miraculosa das caixinhas de música, o deleite de um ópio imaginário de quem mastiga sonhos habitualmente e habita ma vida outra, todos esses cenários, folguedos, ilusões, são convocados nestas  páginas com impressionante habilidade oficinal, sempre ao serviço de uma modernidade discreta que, repito, “incorpora” a música verbal, transforma a dor em oração voluptuosa, breve canto a uma dispersa poalha de instantes perfeitos.

Não é este apenas mais um harmonioso, delicado livro de poemas de Ana Mafalda Leite, é o ponto de chegada de uma finíssima e actual arte do subtil, do evasivo, do imponderável, por vezes unido à pós-moderna ironia hedonística, ao serviço de uma transfiguração do corpo usado em corpo renascido.

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