A Poesia Como Forma de Encantamento

Marcelo Panguana


O lançamento de dois livros de poesia, logo no começo de um novo ano, pode ser um significativo prenúncio para uma literatura tão nova, a precisar ainda  de autores que a estimulem e a façam conhecer através deste nosso País imenso e belo e também pelo mundo fora, onde a nossa literatura, infelizmente, continua sendo uma grande incógnitaSe estas duas obras que hoje temos o privilégio de partilhar a sua apresentação pertencem a uma escritora  de reconhecido mérito como a Ana Mafalda Leite, professora universitária, investigadora, ensaísta e poetisa, nada nos pode fazer duvidar que os deuses se prestam para transformar este ano, em termos de publicação, o melhor de todos os anos. Não se trata de uma simples coincidência o facto da cor verde, a tal cor que se diz ser de esperança, decorar o “Livro das Encantações», como também não é por mero acaso que na capa do mesmo livro, o luar de Tete, prenunciadora de todas as abundâncias, sobrevoa imponente  as águas do Zambeze  e deixa sobre elas um lastro dourado. Não é por mera coincidência que o livro tenha como pano de fundo a imagem   feminina de admirável  sensualidade se despindo impudica ao mundo, tal e qual como a literatura moçambicana se deve despir, sem preconceitos, nos palcos de todo o mundo.

A Ana Mafalda Leite apresenta-nos, naquilo que posso considerar um golpe de mestre, duas obras : o «Livro das Encantações e outros Poemas» e «O Amor essa Forma de Desconhecimento». Ao primeiro livro decidiu-se designar antologia. Suponho que uma antologia seja como um filho que nasce duas ou mais vezes recolhido do útero de outros livros. Quer dizer, pode se definir como sendo uma forma de ressuscitar os textos mais significativos que se encontram registadas nas obras de um determinado autor.  Penso que o « Livro das Encantações» não foge a essa meticulosa selecção dos textos poéticos que devem ter marcado a trajectória da Ana Mafalda Leite, obviamente recolhidos nas obras : «Em Sombra Acesa» (1984) ; «Canções de Alba» (1989); «Mariscando Luas» (1992) ; «Rosas da China»( 1999 ); «Passaporte do Coração» (2002) ; «Livro das Encantações»(2005 ) .Como se pode verificar  já  vai um pouco longo o percurso da Ana Mafalda, um percurso que não temos vindo a acompanhar com a atenção que seria de dispensar a uma autora que ao longo dos últimos tempos tem prestigiado a nossa literatura, quer através da poesia, como através dos estudos sobre a literatura moçambicana que tem vindo a publicar.

As dedicatórias que se podem observar em alguns dos poemas inseridos no « Livro das Encantações » permitem aquilatar  a  dimensão dos laços de afecto e de cumplicidade que a Ana Mafalda Leite foi tecendo ao longo dos tempos, cumplicidades que se estendem a um Mário Botas, recordando o Gulamo Khan ou à memoria da Helena, à Sónia Sultuane, ao João Paulo Borges Coelho, Idasse, Armando Artur,  Ana Magaia, Jaime Santos e Lourenço de Rosario ; ao Andre, ao Jota, ao Marco, à Sara, ao Paulo e à Joana. E também o Francisco Noa, a Ana Paula Tavares, o Lopito e sem esquecer o Kandjimbo. E ainda à tantos outros. Devem ter sido cumplicidades fantasticas. Porque a Ana Mafalda Leite nunca soube de que lado estava o desamor. Mas soube, desde sempre, de que lado estava a ternura, o que me leva a acreditar que ela sabia que a poesia, incluindo a sua, poderia alimentar essa ternura. Por isso a Ana Mafalda Leite, através da sua poesia, se despiu perante os seus leitores, porque tal como o Manuel Laranjeira, porque acredita « que quando a alma do artista se põe nua diante do público, é com uma nudez orgulhosamente casta». 

Se quisermos dar um mérito a esta antologia, esse será, em minha opiniao, o de traçar um percurso poético e de escrita rica no seu equilibrio. Um percurso onde podemos encontrar os sentimentos que  a tem acompanhado  e as grandes interrogações e contradições que esses mesmos sentimentos despertaram em si.  Pode-se verificar, também,  que compareceram neste livro momentos de grande ternura, assim como momentos de enorme desencanto. A poesia da Ana Mafalda é, se quisermos, pacifica e pacifista. Em nenhum momento atira pedras. Não grita nem insulta. Ela surpreende pela forma como procura ser solidaria, como procura o amor. No «Livros das Encantações e Outros Poemas» não encontramos nenhum poema que atira «molotoves», um poema incendiário ou em estado de greve, se consideramos que em determinado momento a literatura deve ser uma expressão da crise e o escritor em crise produz uma literatura  denunciante, crítica. Mafalda envereda por um outro caminho : o da ternura!

«O Livro de Encantações» parece-me ser, sobretudo, uma tentativa de reflexão sobre o homem, o amor e sobre os lugares. Uma tentativa de reflexão sobre as afectividades. Quer elas se situem dentro e fora do universo familiar, dentro e fora do universo dos Países que constituem o epicentro da sua poesia.

O conhecimento do oficio, isto é, da arte de fazer poesia, apesar dum percurso que a evidenciou como uma importante estudiosa, potenciou esta antologia. Ana Mafalda Leite conhece as grandes hesitações do escritor, as suas perturbações, o desespero perante a folha branca, a inevitável perplexidade do escritor perante o silencio da critica que retarda o reconhecimento da sua obra; por isso ela escreve da maneira como escreve, por isso a sua sensibilidade critica a fez escolher para «O Livro das Encantações e Outros Poemas» os poemas que escolheu e que tornam esta antologia um verdadeiro espelho do que de mais belo escreveu esta poetisa de cabelos de fogo e olhos cheios de mar.  É uma poesia cheia de elementos marcantes : a lua, as árvores, a agua, o fogo, um barco com uma permanente vontade de empreender uma viagem, de partir. E a Mafalda  junta a tudo isso as missangas da sua terra, as rosas da china, as vozes dos mantras, o tufo, o canto das casuarinas, e todas as paisagens ainda por vir. Os poemas da Ana Mafalda Leite se recusam a ter uma Pátria, viajam por territorios desconhecidos, pisam terras, conhecem novas gentes, adoptam novas falas, assimilam novas culturas. É por essa razão que,  embora pousando no chão da sua terra e se perfumando do húmus do seu Indico, a poesia que encontramos no «Livro das Encantações» veste-se  de imenso universalismo. Talvez por essa razão, na carta-poema dirigida ao Rui Knopfli, a Ana Mafalda escreveria : « pátria minha, passaporte, naturalidade, só uma, a poesia ». Palavras que acabam sendo quase as mesmas que o poeta Calane da Silva deixaria ficar no belíssimo posfácio sobre essa forma apátrida de ser da Mafalda, que embora  « transportando nos olhos-alma  o luar de Tete e as aguas do Zambeze, as praias do Indico e o cheiro da chuva moçambicana, tem também no espirito-iris a caricia de uma primavera lusitana, o alumbramento de velas no altar de uma catedral gótica. Uma pessoa que tem, sobretudo, um coração-barco navegando sem fronteiras, uma escrita-passaporte para todas as paisagens-emoções do universo da poesia».

Temos, hoje, o privilégio de assistir também a apresentação pública de um outro livro da Ana Mafalda Leite:  “O amor essa forma de desconhecimento”, que posso considerar como sendo uma longa interrogaçao sobre o amor, uma interrogação que começou nos distantes tempos em que ainda não haviam nascido os antepassados que haveriam, por sua vez, de serem os tetravós dos avós da Ana Mafalda, uma interrogação sobre o amor, dizia, que se arrasta até aos nossos dias. Deve ser o livro da Ana Mafalda Leite mais difícil de abordar, quão complexas são as matérias que envolvem o amor, quão intangíveis são os fenómenos emocionais que envolvem o homem e a mulher quando o amor lhes bate a porta. Ou quando não lhes bate porta nenhuma !  Deve ser, também, a mais pura e verdadeira declaração de amor que a Ana Mafalda Leite teve a ousadia de pronunciar publicamente utilizando a metáfora e os símbolos poéticos para nos falar do amor  ou da sua perca, ou para nos indicar a direcção  do « seu oriente », onde o amor se faz e acontece. Dizia o Silviano Santiago, no interessante prefacio que escreveu para este livro que «A experiência por que passa o poeta lírico ao enfrentar o amor como forma de desconhecimento é semelhante  à perda da bússola por parte do capitão do navio. Sem a segurança dos mapas e dos caminhos  de há muito traçados e palmilhados pelos antigos aventureiros da linguagem, a informação dada pelo instrumento náutico se torna infecunda. Há que se riscar em novas e audaciosas preambulações, a esmo. O amor como forma de desconhecimento é matéria da desorientação em busca do oriente », concluiria Silviano Santiago.

E eu digo: Nao ter amor é como nao ter uma massala para comer. Ou o Indico para amainar o cansaço dos nossos olhos. Nao ter amor é como nao poder saborear as saborosas tangerinas de inhambane que o mestre José Craveirinha tanto gostava. Fora do amor ha desconhecimento. Ha escuridao. Cegueira. Paisagens tristes. Homens e mulheres cabisbaixos .  Nao ter amor é o nao ter um espaço geografico por habitar. Por isso, Mafalda nos diz : «  amor meu territorio,  junto à ti amor invento uma patria » . Nao ter amor é nao ter um corpo para aprender a gemer nas ocasioes de ternura porque o amor, como escreveria a Natalia Correia, é  o fulcro de todo o dinamismo humano e só atinge a plenitude do seu poder genesiaco pela sacralizaçao da carne”.

No livro «O Amor essa Forma de Desconhecimento» a autora as vezes se afasta da riqueza da metáfora e do rigor da palavra. Quando isso acontece o seu discurso torna os sentimentos e cenários mais claros e evidentes e a poesia se assemelha as aguas calmas onde a autora pode matar a sede dos seus sentimentos :

Um sabor a tangerina

O perfume

Um sabor a tangerina

Faz calor

Fecho os olhos

Gomo a gomo  a tua boca me sente

Não me considero um estudioso da poesia da Ana Mafalda Leite. A sua escrita foi me chegando nos intervalos de tempo. Desde entao tenho sorvido os gomos que a sua poesia me tem oferecido e deixado me fascinar pela sua maturidade.  Apesar desse conhecimento incipiente que tenho dos escritos da Ana Mafalda,  me permito afirmar, sem nenhuma hesitaçao,  que os seus livros teem vindo a enriquecer a literatura deste país que nunca deixou de lhe pertencer, apesar dessa sua diaspora que ja vai longa. É a essa mulher sem pátria, viajante de todas as utopias, que desejo uma vida longa de amor e criação.

Digite acima o seu termo de pesquisa e prima Enter para pesquisar. Prima ESC para cancelar.

Voltar ao topo