Esta experiência global poderá levar a humanidade a reflectir e a mudar

Entrevista a Ana Mafalda Leite, na Literatas (14 Abril 2020)

Ana Mafalda Leite é ensaísta, docente e “principalmente” poeta, com mais de 30 anos de trajetória criando versos: seu primeiro livro de poemas, “Em sombra acesa”, foi publicado em 1984. Os seus livros “O Amor essa forma de desconhecimento” e “Livro das Encantações – Antologia (1984-2005)”, ambos de poesia, são os que provavelmente mais circulam em Moçambique, uma vez que foram lançados por uma editora local. Todos porém tratam-na de professora, visto que é das que mais fez (e faz) estudos sobre a literatura, em especial a poesia moçambicana. A sua dimensão humana, a poetisa, é que mais fala nesta conversa que tentamos encontrar um alento neste tempo de caos, que talvez sirva para encontrar novos ou diferentes caminhos para a nossa humanidade…

O fim do mundo é sempre uma realidade possível ou fictícia?

O fim do mundo pode chegar a qualquer dia da semana. O fim do mundo é todos os dias, quando pensamos que uma parte da humanidade vive com fome e sem condições de dignidade social, como ter direito a trabalho, a casa, a saneamento, muitos sem pátria, em nomadismo de sobrevivência, em camps de refugiados, etc. As visões apocalípticas sempre acompanharam a humanidade, se pensarmos em Nostradamus até uma infinidade de profetas mais locais e virtuais, astrólogos, videntes, meteoros gigantes a chocar com a terra e alienígenas em descida colonial; no entanto os tempos que vivemos, com a deterioração ecológica do planeta, a ameaça subliminar da guerra nuclear, e a violenta e fracturante hierarquia social de riqueza versus miséria, mostram uma possibilidade real de isso acontecer, a médio ou curto prazo.  

O que está a acontecer actualmente com a pandemia talvez ensine aos homens de poder e os governantes que é necessário investir mais em meios de cura, ciência, hospitais, cultura e educação, do que em material sofisticado de guerra, exibido em longos desfiles de bombas, mísseis, aviões, que os países filmam para temor de todos nós, os outros, como se de um jogo de crianças se tratasse. Afinal de contas, perante esta “guerra” virológica onde estão as armas de defesa, o arsenal necessário? Onde estão os generais? Nos hospitais são os médicos que lideram aquilo que apelidaram de “guerra”, muitas vezes sem as armas necessárias, porque até aqui elas não eram fundamentais….

O que é mais triste na vida. O fim dela?

A vida é o momento presente, o dia-a-dia, e o fim está sempre presente, a todo o momento, como no caminho da bailarina sobre o fio suspenso no vácuo, ou a dança da trapezista audaz tentando alcançar a vertigem do malabarismo, em artística devoção. Nascemos com o fim às costas, como um caracol que leva a sua casa presa ao corpo, alguns até morrem ao nascer…Não sei se podemos falar de tristeza, ou de aceitação da condição de ser vivo.

A vida gere-se pelo princípio da incerteza, que hoje em dia é muitas vezes esquecido, porque alguns de nós se habituou a ter tudo o que quer, e de forma fácil. E para quê preocuparmo-nos com a morte? Se a vida tem tantos problemas que temos de resolver primeiro, como diria Confúcio.

O que fazer quando a morte bater à porta?

Sair pela porta com a dignidade possível, acreditando que valeu a pena, que fizemos  dessa arte do malabarismo vivente, um ofício com elegância, o mais individual e socialmente íntegro. E esperar que não sejamos confrontados com a notícia de uma morte anunciada. De sermos empurrados à força para a porta. Porque o conhecimento antecipado pode ser um prolongamento inevitável da dor de partir. Ou como diria ironicamente Voltaire, aproximamo-nos do momento mais linear possível, em que a riqueza, a notoriedade, o conhecimento, a honraria, se anulam em pó terrestre ou sideral: “Aproximo-me suavemente do momento em que os filósofos e os imbecis têm o mesmo destino.”

Perante os acontecimentos contemporâneos, vê alguma beleza no mundo?

O mundo é de uma beleza extraordinária, e também de uma feiura equivalente, é uma sintonia de contrários. Um autêntico milagre, uma dádiva, para utilizar uma linguagem entre religiosa e  científica. O que fazer? Passo a citar: “Trabalha como se vivesses para sempre. Ama como se fosses morrer hoje” (Séneca).

Se sim, quais são essas belezas?

Para as descrever teria de escrever de novo as narrativas das Mil e Uma Noites. Ou viver uma nova profissão que ambiciono, ser astrónoma, e escrever sobre a infinitude do universo e a poeira que são as galáxias nesta aventura da matéria sideral.

Mas talvez, a maior beleza, seja a do amor, que nos dá e ilumina a vida. A fugacidade e mutabilidade de tudo, o sopro da luz e do vento, o poder olhar e ver as cores maravilhosas de tudo o que nos rodeia.

Quando não resta mais nada além de ficar em casa, o que fazer da vida?

Eu gosto imenso de estar em casa, de poder ler, meditar, não pensar em nada, ter tempo livre de contemplação, usufruir de um ócio contrário à lógica tenaz das obrigações, faz isto, acaba aquilo, corre para o prazo, não durmas há horário a cumprir, etc. Ou seja adoro gerir o meu tempo no interior de mim e da casa. A vida dentro de uma casa pode ser uma vida dentro do nosso cosmos, quando nele temos o que precisamos, livros, música, canetas, paisagens, tranquilidade, paragem das urgências e da celeridade do tempo actual.

E quando, finalmente, tiver de sair, para onde irá?

Para o mar, para caminhar sentindo a água molhando os meus pés e sentir as nuvens a correr em todo o seu esplendor, as ondas a rolarem com o som maravilhoso de casuarinas e pinheiros, ou então ir para os campos, para sentir na caminhada a terra e os cheiros das flores, a vivacidade das cores, ou ainda se possível para uma viagem a uma ilha paradisíaca, se voltarmos a viajar como antes. Sou bastante bucólica e gosto de lugares pequenos, que me aproximam mais rapidamente da noção de infinitude e de liberdade.

O poeta é um fingidor./ Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente. Fernando Pessoa

Se não tivesse que fingir, sobre quais verdades escreveria?

Eu acho que nunca fingi, escrevo sempre sobre as minhas verdades, que são, naturalmente distorções subjectivas e dramatizáveis do que vi ou senti ou pensei. O fingimento é essa pequena variação com que eu escrevo/penso/sinto a minha versão da verdade. Por isso sentimos tudo e tão completa e intensamente e de todas as maneiras….

Supondo que um mundo novo exista, como ele seria?

A haver uma aprendizagem com esta experiência de confinamento, poderemos utopicamente? pensar num mundo mais humanizado, numa espécie de nova ordem mundial; ou então, caso a situação não leve a transformações sociais profundas, vão regressar ou agudizar-se os nacionalismos, as fronteiras…. as desigualdades e as diferenças entre os homens e países vão tornar-se ainda mais violentas e ferozes e o direito a viver e a morrer dignamente vai ser cada vez mais difícil.

Paz, Guerra, Mudanças Climáticas, Aquecimento Global, Bomba Nuclear, Vírus, Corrupção, Violência são algumas das palavras que se repetem todos os dias… será a vida uma causa perdida?

Não sei. Espero que não, o homem sempre teve possibilidade de se superar e espero que isso aconteça. Esta experiência global do confinamento e da “democratização da morte” – perdoem-me a expressão, que roubei parcelarmente ao filósofo camaronês Achille Mbembe –  poderá ser uma forma de levar a humanidade a reflectir e a mudar. Não há economia, nem poder, que sobreviva a esta força devastadora, a esta praga que atinge todos, sem olhar a classe, origem, raça, religião. Ao afastar-nos, estará possivelmente a fazer-nos intuir na importância da ideia de colectivo, de solidariedade e da imperativa necessidade de nos unirmos. Provavelmente estará a lembrar-nos, ao impedir-nos usufruir da natureza, da necessidade de cuidarmos mais e muito melhor dela, em vez de a destruir. Ao contaminar o nosso corpo a fazer-nos ver que ele é uma ameaça para os outros se não o cuidarmos, e apesar de não ser uma arma, o corpo metaforicamente se transformar uma espécie de granada ambulante.

Que livros ler neste tempo de crise? Que músicas ouvir? Que filmes ver?

Filme: lembrei-me dos anjos, personagens que sempre me acompanharam no meu percurso de escrita e de leitura, e evoco um filme de Wim Wenders, Der Himmel uber Berlin de 1987 (As Asas do Desejo, encontra-se na internet traduzido), que muito me impressionou e do qual guardo imagens muito fortes.  Quando Asas do Desejo é realizado ainda estamos sob a separação da cidade de Berlim, da Alemanha, do mundo, em dois blocos que configuram a Guerra Fria. Ninguém poderia prever que pouco mais de dois anos depois da première do filme a história daria uma dessas reviravoltas que nos deixam atônitos, e o Muro cairia. Com ele, toda uma maneira de ver o mundo. Foi como viajante, e não como turista, que Wenders escolheu Berlim, para realizar um filme que é sobre ela, mas, mais que isso, sobre um tempo, uma história e uma utopia. O tema dos anjos foi encontrado, conta W.W., ao caminhar pela cidade, depois de ter considerado a possibilidade de muitas outras abordagens. Ele diz ter visto anjos por toda parte, em monumentos, fontes, estátuas ….

Música:  Alegria e vida intensamente orquestrada com Mozart, em A Flauta Mágica, também se encontra no youtube com tradução do texto da ópera.

Livro: O Profeta do poeta libanês Khalil Gibran (também possível de ler pela internet).

E antes de morrermos todos. Valeu a pena ter vivido? Porquê?

Se valeu, viver é uma experiência única e maravilhosa, experimentar o amor e o encantamento, a luta, o inebriamento pelas emoções, a viagem e a contemplação, o dom de poder imaginar, voar, transformar os braços em asas, conhecer, desconhecer, aprender, enfim, viver é de menos, saberá sempre a pouco, gostaria de ser como Matusalém e viver centenas de anos….

Mas e se não morrêssemos valeria ainda assim a pena a vida?

Não me importava de aceder à imortalidade…. e transmitir o que aprendi. E aprender tudo aquilo que em muitas vidas seria necessário reiniciar.

A arte ainda pode salvar o mundo?

Pode transformar o espírito dos homens e dar-lhes força anímica, emocional e espiritual para tornar mais intensa e transformadora a experiência da vida.

Uma frase para as civilizações que chegarão depois de nós para que saibam quem fomos e o que fizemos?

A aprendizagem leva à mudança. Cultive-se a paz e o conhecimento. O amor e a cultura são as maiores armas do homem.

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